terça-feira, 12 de maio de 2009

O avesso de Eros

Marco Antonio Coutinho Jorge
debate no Espaço SESC
29/3/2009

Agradeço muito ao Quinet pelo convite para conversar um pouco sobre a peça. É um prazer estar aqui com Gloria e também com vocês. Infelizmente, não pude ver a peça antes, porque isso teria sido certamente necessário para a gente poder explorar mais uma porção de elementos que a peça apresenta. Ela tem uma densidade, uma riqueza de elementos que, certamente, dão vontade de ver de novo.

Com Lacan pelo avesso
Antes de tudo, o fato de Quinet, um psicanalista lacaniano, ter reescrito ou transcriado o Édipo, é extremamente relevante. Só um psicanalista lacaniano poderia ter uma visão do Édipo em que a ênfase fosse colocada em alguns aspectos. A primeira coisa que me ocorreu, foi que deve ter sido muito difícil escrever isso, deve ter sido de virar pelo avesso. Para se escrever, como diz o nome da peça, Édipo pelo avesso, é preciso virar pelo avesso. Para um psicanalista fazer um trabalho desses, é preciso tomar contato com uma intimidade de questões suas, pessoais, dos seus pacientes, da sua experiência de vida e da própria psicanálise. Eis o que confere a força e a verdade que se vê na peça.

A abertura com Laios
Algumas coisas para mim chamam atenção. Em primeiro lugar, o fato de que Quinet deu palavra no texto para personagens que, na peça do Sófocles, nas diferentes versões, elas não aparecem com palavras, mas são apenas indicadas. A abertura com o texto de Laios, achei magnífica, porque é exatamente um texto que a gente pode supor. Eu acho que Quinet quis trazer a idéia de que é um texto que está subjacente à peça, ele move a peça. Um texto que, exatamente porque está de alguma forma recalcado, esquecido ou até obliterado, por todos os modos, quando ele é explicitado, faz com que a gente veja que há outros elementos na peça que não se via até então. A história do Laios, a história que ele infringiu a Lei da Hospitalidade é muito mais relevante do que o fato da homossexualidade do Laios, que muitas vezes é colocada no primeiro plano. Na verdade, não é a homossexualidade de Laios que é a responsável por toda declinação trágica do que virá com a sua descendência, mas sim o fato de que ele infringiu uma lei. A lei da hospitalidade era uma lei extremamente poderosa naquela época. Qual é o efeito disso? Ele se apaixona por Crisipo, e o faz o rapto. A maldição que o pai de Crisipo profere é que será responsável por toda a transmissão transgeracional da desgraça no texto que você mostrou... Achei muito bonito esse texto que foi divulgado para o debate. Não sei se todos vocês puderam ler. Isso vai ser responsável porque alguma coisa ali se produziu como sendo o próprio significante da filiação. “Você seqüestrou e raptou meu filho, aquele que eu amo, então, você receberá do seu filho, o ódio.” É uma espécie de reversão absolutamente forte do que acontece na história do Édipo. É, se assim podemos dizer, a “história patológica pregressa”.

A voz de Jocasta
Outro momento que acho importante foi aquele em que você dá voz a uma personagem cuja voz não está tão explícita no texto do Sófocles: é a Jocasta. Ela aparece dizendo coisas e até mesmo fazendo coisas em cena que mostram sua posição. Isso foi indagado por vários comentadores e estudiosos da tragédia, e Lacan chamou atenção para o quanto Jocasta sabia. Parece que desde o começo... Inclusive eu reparei muito na atriz que a fez, ( Lilian Chalub que se encontra na platéia do debate). O quanto ela, desde as primeiras falas, pelo seu olhar, transmitiu uma inquietude de alguém que está começando a se aproximar de uma verdade que não pode ser tocada. Ela transmitiu isso logo, desde o início. E quando ela toma a palavra naquele monólogo, é maravilhoso ver como ela vai expressar isso de uma forma muito grande, chegando a fazer a gente pensar um pouco assim: o quanto Jocasta, na verdade, reage àquele pedido do Laios para que ela entregue o filho para ser morto. Ela reage a isso de uma maneira terrível, como se ela se vingasse de Laios, mantendo na relação incestuosa, uma vingança. “Você pede para que eu mande matar nosso filho, pois aguarde que ele vai ocupar o seu lugar.” Terrível isso tudo que logo começa a aparecer.

A pulsão de morte
Achei o texto do Quinet maravilhoso por esses poucos elementos que estou comentando e vários outros. Achei maravilhoso por ele explorar a densidade da peça, principalmente no ponto que agora eu gostaria de tocar: a questão da pulsão de morte. Há certa angulação que Quinet vai dar à tragédia, enfocando a pulsão sob a face da pulsão de morte, que está muito além da face com a qual normalmente a gente enxerga a tragédia, que é a face do incesto e da pulsão sexual. Para nós, psicanalistas lacanianos, a pulsão sexual está ancorada na pulsão de morte, mas, na maioria das vezes, a gente não vê a pulsão de morte. Ela fica no segundo plano, e fica tão ofuscada pela sexual, que é barulhenta, muito ruidosa, feérica que a gente não a vê. A pulsão de morte é a base de tudo. Parece interessante ver como esse desamor, esse ódio que fez com que Édipo fosse enviado para a morte, retornasse sob todos os personagens. A pulsão de morte, que ele carregou desde sempre, vai reincidir sobre todos os personagens principais, sobre a família e a geração que está por vir.

Me Funai – antes não ter nascido
Veio-me à mente um texto do Férenczi, que gosto muito chamado “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte”. Curiosamente, Quinet, eu nunca havia feito uma relação entre esse texto, que é uma obra prima de Férenczi e o Édipo. Hoje ficou claro de onde o Férenczi..., que não fala disso no texto, mas é evidente que o texto do Férenczi é sobre o Édipo. “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” significa que, quando uma criança vem ao mundo, ela não está atravessada pelo desejo de viver. Principalmente, ela deseja, na verdade, retornar, como Óidipous fala no final: “me funai”, antes eu não tivesse nascido, porque a morte é paz, é tranqüilidade, é sossego. A vida é que é turbulência, desassossego. O que faz com que uma criança, quando vem ao mundo, queira viver, deseje viver, não é algo que ela carrega nela, algo que vem do Outro. Esse Outro de que Lacan fala tanto, é o Outro do amor e do desejo, o Outro que vem da mãe, do pai, e, sobretudo que faz com que a criança muito rapidamente comece a ter desejo de viver, a encontrar na vida motivos para viver. Eu achei bárbaro como que a questão pulsão de morte adquiriu um plano muito importante no texto que Quinet transcriou com Sófocles, fazendo ver algo que geralmente não se vê.

Eros e Tânatos
Quinet: – A Coriféia diz logo depois do monólogo de Laios que “Será Óidipous capaz de ver o que das trevas a luz descobre, do parricídio ao filicídio, do incesto do filho, crime do pai?”. O filicídio está encoberto pelo parricídio e o crime do pai está encoberto pelo incesto com a mãe.
Marco Antonio: – É isso.
Quinet: – O “pelo avesso” – você pegou e tão bem comentou – é exatamente o filicídio e o crime do pai.
Marco Antônio: – Isso é muito interessante e faz a gente rever e repensar essa questão, porque, analiticamente, a questão do amor e do desejo do outro é fundamental, marca o sujeito desde sempre. Aliás, há outro momento forte em que Jocasta fala disso: a força do homem vem do amor, e sua potência vem da mãe.
[Interrupção feita pela atriz que interpreta Jocasta.]

Liliam Chalub – “Toda potência de um homem vem de sua mãe. É por ela o ter amado como o filho varão que ele crescerá forte, confiante, orgulhoso, com Eros em seu membro, em seu coração.”.

Marco Antônio: – Que deslumbrante! Maravilhoso! Eros é vida, Eros é sexo, sim. É vida, na dialética freudiana. No final sua própria vida, Freud trabalhava o tempo com essa dualidade vida e morte. Eros, o sexo, o sexual é o apego à vida, o apego aos objetos, mas que faz de alguma forma, um freio em relação à destruição: a autodestruição e a destruição do outro. Essa fala da Jocasta é maravilhosa. Vai exatamente dizer o quanto essa posição do Outro define o destino da criança. Maravilhoso! Fiquei muito contente, emocionado porque uma obra de arte é essencialmente uma coisa que toca a gente. A peça vai adquirindo uma densidade! A música, que gostei muito, cria todo o ambiente com alguns pequenos sons, uns barulhinhos que dão um clima que vai crescendo em densidade até o final, que toma uma força extraordinária!. A saída de cena do Édipo achei maravilhosa!. Ficam todos e ele sai de cena. De lá vem uma luz forte. Vocês repararam? Aqui escurece tudo. Ele cego está diante da luz muito forte - o que mostra a antítese que na peça de Édipo rei é jogo de ambigüidades, de oposições, que é explorada de uma maneira maravilhosa.


Responsáveis pela transcrição do debate:
Fernanda Guapyassú de A. Santiago – aluna UVA
Luis Manuel Gonçalves Braz – aluno UVA
Revisão : Ondina M.A.A. dos Santos – aluna UVA
Aline Drummond – Professora UVA

Nenhum comentário:

Postar um comentário