sexta-feira, 3 de abril de 2009

resposta a Bárbara Heliodora

Édipo antropofagizado

Ousei sim

Sim, como Bárbara Heliodora me acusou, eu ousei tocar na peça de Sófocles, Édipo Rei e foi, como ela mencionou, como professor e psicanalista (cf. O Globo, 21/3/2009). Sim, mas com o propósito de encenar minha terceira peça de teatro desta vez com a Cia. Inconsciente em Cena que traz ao palco a pesquisa cênica inspirada em Freud e Lacan. Daí a escolha da peça fundadora da dramaturgia e da psicanálise transcriada à luz das contribuições contemporâneas.
É crime?
Será um crime (de lesa-majestade), um psicanalista fazer teatro e por isso ser publicamente desrespeitado? Se esse “crime” parece novidade para alguns, não é o caso, por exemplo, nem na Argentina, com Eduardo Pavlovsky, nem na França com Alain Didier-Weill, Jean Gillibert e François Regnault, este último professor da Universidade de Paris 8. E tampouco em São Paulo, como o testemunham Betty Milan e Contardo Caligaris. Afinal de contas, a psicanálise sempre esteve ao lado da arte desde Freud, que encontrou nas obras de arte de Sófocles, Shakespeare, Goethe, Leonardo da Vinci, etc, as mesmas manifestações do inconsciente que ouvia de seus pacientes e que o fizeram inventar a psicanálise.
O Inconsciente na arte e no divã
Nada de espantar, pois ambas são feitas do mesmo material: as tragédias familiares, os conflitos intra e intersubjetivos, os sonhos, as paixões como o amor, o ódio e a ignorância, encontros e desencontros, e todos os tipos de atos falhos e bem sucedidos.Não esperava, como fez a crítica do O Globo, colocar-me na série daqueles que “se arriscaram a tratar do tema” como Sêneca, Jean Cocteau e Pasolini entre outros.
Faltou o pequeno "a"
Tampouco fiz uma "transcrição" como ela diz e não compreendeu; e sim uma transcriação como está escrito em toda a divulgação. Porém o pequeno a escapou à leitura talvez apressada da especialista em Shakespeare. Os analistas perceberão o "ato falho" – faltou o objeto, dito pequeno a, de Lacan, que designa a posição do sujeito com o objeto de desejo ou repúdio, e que norteia a releitura da peça (vide programa). "Transcriação" é um termo de Haroldo de Campos para designar a tradução criativa, com todas as licenças poéticas e interpretantes, cujo texto o autor pode reivindicar como original e própria.
O Inconsciente é o infantil do adulto
O texto de Óidipous, filhos de Laios respeitou a estrutura do texto de Sófocles com interpolações de cenas e interpretações a partir dos comentários de Freud, Nietzsche, Hölderlin, Vernant, Lacoue-Labarthe e Lacan. Mantive a proposta de Sófocles de colocar nos protagonistas uma linguagem coloquial e no coro uma linguagem metafórica. Se para Barbara Heliodora o resultado é uma encenação que se dirige a um público infantil, prefiro pensar que não se trata de uma desqualificação da psicanálise e do público a que ela se dirige e sim daquilo que se sabe há mais de um século: o Inconsciente é o infantil de todo adulto. Ou talvez ela partilhe da opinião comum de que a Antiguidade grega é a infância da humanidade.
A tradução resgata o que foi dito
Para resgatar o poder de comunicação da peça, substituí alguns deuses gregos e suas histórias, desconhecidos do público, por seus atributos e representações, tal como Hölderlin traduz Zeus por o Pai do tempo, simplesmente por que Zeus não significa mais nada para nós. Afinal, como diz Françoise Dastur, “a tradução consiste em reescrever o texto, a fim de fazer aparecer o que realmente foi dito”.
Eu, você e ela: os Édipos
Óidipous, filho de Laios não é uma peça metalingüística sobre Édipo Rei de Sófocles, ou uma desconstrução (como o estupendo, e também desqualificado por Bárbara Heliodora, Ensaio Hamlet pela Cia. dos atores) e sim, como já dissemos, uma transcriação que estabelece um diálogo com o tragediógrafo grego e coloca em cena a essência do que a peça transmite – a relação entre o saber e a verdade – numa releitura contemporânea e brasileira. O resultado se encontra do lado de um público de variado grau de instrução que acompanha emocionado o desvendamento da verdade e sua negação por parte de Édipo, produzindo o efeito trágico, descrito desde Aristóteles, em que através do reconhecimento dos desastres da vida, e da catarse propiciada pela encenação (texto, música, espetáculo, atuação), o espectador sai do teatro tocado e revigorado. Afinal, Édipo sou eu, você e ela também.
O que se herda
Nossa releitura reintroduziu o tema da maldição (presente em Ésquilo) que Édipo, sem saber, herda do pai e influencia todos seus atos – o que não retira sua responsabilidade. Não se trata de "predestinação”, como propõe B.H., que é um termo vago e ultrapassado, e sim da herança simbólica e inconsciente que todos recebemos como seres humanos tecidos pelas histórias e desejos paternos e maternos.
Óidipous e a Esfinge
Oidipous, filho de Laios retoma os nomes dos personagens em grego não por um "anseio de originalidade" do autor, e sim pelo fato de a peça centrar-se na equivocidade significante em grego entre o enigma da Esfinge (dipous, tripous, tetrapous – dois, três e quatro pés) e o nome de Édipo (Oidipous = pé inchado, saber no pé).
Iokaste não sabia??????????
Quanto à Iokaste (desculpe, Jocasta) é surpreendente que ela afirme que em Sófocles ela quer “só buscar salvá-lo do sofrimento” ao vê-lo aproximar-se da verdade. Isso é retirar toda a complexidade do personagem dessa mãe que manda matar o filho ao nascer e, mais tarde, casa-se com ele e lhe dá quatro filhos malditos que também terão um fim trágico. Toda reflexão mais aprofundada sobre "Édipo Rei" deixa claro que era impossível Jocasta não saber que seu marido era o filho que sobrevivera a sua tentativa de filicídio.
A deglutição de Sófocles
Quanto à encenação, a referência aos índios brasileiros não é casual e sim explícita. Ela está presente na composição musical que utiliza elementos gregos e indígenas, nas máscaras dos índios do Xingu, nos bambus utilizados no coro como nas danças dos índios, etc. Trata-se de aproximar daqui e de hoje essa peça grega de 2.500 anos mostrando que o homem é o mesmo e, assim, apontar nossa origem grego-indígena – eis o que nossa "antropofagização" de Sófocles , como diria Zé Celso, produziu.
O estranho do Inconsciente trágico
O mito originário de Édipo é, como o Inconsciente, transcultural e estrutural. Daí o emprego dos coturnos, que os atores gregos utilizavam, para Oidipous e Iokaste (que os retiram ao fazer amor), como, as saias (da cultura oriental) para os personagens: vermelho para os reis e preto para o coro. O trono, constituído por um caixote com bambus, além das folhas secas são os únicos elementos cenográficos num palco vazio – como nos teatros gregos e tabas indígenas – enquadrado pelos músicos distribuídos em quatro cantos. Todos esses signos cênicos simples estão lá para serem lidos juntos à excelente direção de movimento de Regina Miranda que confere ao coro sua dignidade trágica. Se tudo isso pareceu “estranho” a B.H. parece que nossa peça alcançou seu objetivo ao trazer à cena o familiar enquanto estranho, que é justamente a característica, como mostra Freud, dos conteúdos do Inconsciente que nos são estranhos e, no entanto, familiares. Estamos assim também fiéis aos gregos cuja característica, como diz Hölderlin, é “o modo de assimilar naturezas estranhas e nelas compartilhar a si mesmo” (carta a Böhlendorff de 2/121802).

Um comentário:

  1. Enfim. Quinet diz a Barbara Heliodora o que ela não "sabia". Não sabia que sabia. O inconsciente também atua como farsa ou como tragédia, tal como certa história prevista, prescrita, tal ou qual marxista ou não. Fazemos a nossa história, mas não sabemos que a fazemos, eis a ousadia-santa-benvinda de Quinet ao rever o Édipo de Sófocles. Arte é criação Doutora Barbara. Escrita ou não, está também no olhar de quem vê,lê,ouve, nega, rejeita, aplaude, admira, se identifica. Arte é esse mistério que toca a alguns - nem todos, com certeza - que não leram o texto-critica da Dra Barbara Heliodora, especialista em Shakespeare. Não em Sófocles, menos ainda em sintomas que a arte revela - ou desvela como Quinet no seu - nosso, Oedipous. Com ou sem pés amarrados- ou atados ao patrão ( pater ), Quinet usa o livre direito de levar a arte adiante, porque os criticos são esquecidos, os autores criadores não.

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