domingo, 26 de abril de 2009

Uma polêmica bárbara


Elisabete Thamer*

Tragédias sempre suscitam paixões. Este era e é, aliás, um de seus téloi ou mesmo sua essência. Oidipou, filho de Laios, de Antônio Quinet, se insere nesta mesma tradição, provocando paixões e polêmicas.

Segundo Aristóteles, o mito é o principio (arché) e como que a alma (hoion psyché) da tragédia (Poética, 1450a). O mito remonta à tradição oral, o que implica variações por vezes dispares de um mesmo tema. É o que ocorre, por exemplo, com o mito de Hércules – algumas versões contam que o herói cumpriu os doze trabalhos para expiar a culpa do assassinato de seus próprios filhos, outras sugerem que os doze trabalhos o antecederam.

O mito excede assim o que foi encenado nas tragédias gregas: os tragediógrafos compunham a partir de um elemento ou de uma das versões de um mito. O enigma proposto pela Esfinge a Édipo, história que mesmo nós, tupiniquins, “conhecemos”, não se encontra na Trilogia tebana de Sófocles, como por vezes imaginamos.

A transcriação da saga de Édipo realizada por Antônio Quinet ultrapassa o âmbito da encenação sofocleana e por isso trata-se, em meu entender, de uma trans-criação e não de simples transcrição. Quinet insere aspectos do mito edípico que, não estando presentes na Trilogia tebana, a completam e esclarecem. Oidipous filho de Laios é, sem dúvida, fruto de elaborada pesquisa, uma obra que poderia ser qualificada de mitopoiética.

É exatamente a literalidade da transcriação greco-brasileira (ou greco-xinguense) de Quinet, que me parece ter escapado ao espírito perscrutador de Bárbara Heliodora (cf. O Globo, 21/03/09). Sem dúvida, Oidipous filho de Laios solicita ouvidos mais helênicos do que “bárbaros” (def. “não gregos”; “que não falam grego”), ouvidos que se deixem invadir pelo equivoco homofônico, pela lalação da alíngua grega, a de Édipo.

Muito poderia se dizer ainda sobre a distinção, crucial, entre “predestinação”, “desastre” e o conceito grego de até, indistintos na crítica de Heliodora. Poderíamos debater também sobre o uso dos coturnos que, mais do que justa indumentária trágica, são mimesis excelsa dos pés inchados, oidipous...

Para nós, psicanalistas, além do thaumazein estético, a transcriação de Quinet abre uma via de reflexão fundamental sobre dois destinos da clínica analítica: enveredar pela via do deciframento, “historial” – o crime de Laios, decifra-me ou te devoro; ou a que conduz ao inconsciente-real, jogo de alíngua, “ahistórico”, indecifrável, letra de gozo, hors-chaîne: oidipous, dipous, tripous, tetrapous... Oidipous, filho de Laios encena essa dupla possibilidade de arrimo da análise. A segunda não vai sem a primeira, mas a primeira conduz à análise infinita. A primeira perpetuará a tragédia; a segunda a transformará, talvez, em comédia.

Tudo o mais é questão de gosto, eterna e catártica polêmica, entre as rãs de Aristófanes e os urubus de Zé Celso.

* Psicanalista, Doutora em filosofia (Université Paris IV-Sorbonne), Membro do Centre Léon Robin de Recherches sur la Pensée antique (CNRS- Paris IV- Sorbonne)

sábado, 4 de abril de 2009

Carta de Liana, uma atriz

Ao Sr Antonio Quinet

Desculpe-me invadir sua caixa de e-mail, assim dessa maneira. Mas nao pude deixar de escrever. Meu nome é Liana e já trabalhei (indiretamente) com o sr. na peça Artorquato. Eu era (ou melhor servia de) assistente de figurino da Luiza Marcier. Foi uma ótima experiência, para um atriz recém chegada ao Rio como eu.

Agora que moro aqui faz algum tempo, e ja me ambientei ao meio cultural não podia deixar de escrever sobre o e-mail que recebi que trata de uma resposta do sr. à critica Barbara Heliodora.

Embora ainda não tenha tido o prazer de assistir a sua peça (infelizmente), pelo pouco que conheço de sua trajetória acho deveras ingênuo crer que o sr. realizaria algo que passasse perto do superficial ou que deixasse a desejar nas pesquisas. Obviamente aqueles que entendem um pouco de psicanalise podem perceber ensinamentos profundos e pequenas sutilezas em seus trabalhos. E para aqueles que ainda não aprenderam a pensar acho um bom momento para começar.Achei a franqueza, a honestidade, e diga-se de passagem, a delicadeza de sua contra-resposta perfeitas. Se faz necessário que alguém do seu gabarito intelectual reinvidique o direito de resposta (porque nós pobres mortais - atores quase sempre rechaçados por ela, e pela crítica em geral, e que não temos titulos de intelectuais não podemos reclamar). Não é preciso valorizar sua arte porque, talvez você saiba disso melhor do que eu, o que vale para o criador, de verdade, é o "encontro do espectador com a obra" (lembrando Jayme Monjardim) e nisso se cumpre seu processo de trabalho, e tenho certeza que com louvor. Parabéns e obrigada em nome de todos nós atores.
Liana Castello

sexta-feira, 3 de abril de 2009

resposta a Bárbara Heliodora

Édipo antropofagizado

Ousei sim

Sim, como Bárbara Heliodora me acusou, eu ousei tocar na peça de Sófocles, Édipo Rei e foi, como ela mencionou, como professor e psicanalista (cf. O Globo, 21/3/2009). Sim, mas com o propósito de encenar minha terceira peça de teatro desta vez com a Cia. Inconsciente em Cena que traz ao palco a pesquisa cênica inspirada em Freud e Lacan. Daí a escolha da peça fundadora da dramaturgia e da psicanálise transcriada à luz das contribuições contemporâneas.
É crime?
Será um crime (de lesa-majestade), um psicanalista fazer teatro e por isso ser publicamente desrespeitado? Se esse “crime” parece novidade para alguns, não é o caso, por exemplo, nem na Argentina, com Eduardo Pavlovsky, nem na França com Alain Didier-Weill, Jean Gillibert e François Regnault, este último professor da Universidade de Paris 8. E tampouco em São Paulo, como o testemunham Betty Milan e Contardo Caligaris. Afinal de contas, a psicanálise sempre esteve ao lado da arte desde Freud, que encontrou nas obras de arte de Sófocles, Shakespeare, Goethe, Leonardo da Vinci, etc, as mesmas manifestações do inconsciente que ouvia de seus pacientes e que o fizeram inventar a psicanálise.
O Inconsciente na arte e no divã
Nada de espantar, pois ambas são feitas do mesmo material: as tragédias familiares, os conflitos intra e intersubjetivos, os sonhos, as paixões como o amor, o ódio e a ignorância, encontros e desencontros, e todos os tipos de atos falhos e bem sucedidos.Não esperava, como fez a crítica do O Globo, colocar-me na série daqueles que “se arriscaram a tratar do tema” como Sêneca, Jean Cocteau e Pasolini entre outros.
Faltou o pequeno "a"
Tampouco fiz uma "transcrição" como ela diz e não compreendeu; e sim uma transcriação como está escrito em toda a divulgação. Porém o pequeno a escapou à leitura talvez apressada da especialista em Shakespeare. Os analistas perceberão o "ato falho" – faltou o objeto, dito pequeno a, de Lacan, que designa a posição do sujeito com o objeto de desejo ou repúdio, e que norteia a releitura da peça (vide programa). "Transcriação" é um termo de Haroldo de Campos para designar a tradução criativa, com todas as licenças poéticas e interpretantes, cujo texto o autor pode reivindicar como original e própria.
O Inconsciente é o infantil do adulto
O texto de Óidipous, filhos de Laios respeitou a estrutura do texto de Sófocles com interpolações de cenas e interpretações a partir dos comentários de Freud, Nietzsche, Hölderlin, Vernant, Lacoue-Labarthe e Lacan. Mantive a proposta de Sófocles de colocar nos protagonistas uma linguagem coloquial e no coro uma linguagem metafórica. Se para Barbara Heliodora o resultado é uma encenação que se dirige a um público infantil, prefiro pensar que não se trata de uma desqualificação da psicanálise e do público a que ela se dirige e sim daquilo que se sabe há mais de um século: o Inconsciente é o infantil de todo adulto. Ou talvez ela partilhe da opinião comum de que a Antiguidade grega é a infância da humanidade.
A tradução resgata o que foi dito
Para resgatar o poder de comunicação da peça, substituí alguns deuses gregos e suas histórias, desconhecidos do público, por seus atributos e representações, tal como Hölderlin traduz Zeus por o Pai do tempo, simplesmente por que Zeus não significa mais nada para nós. Afinal, como diz Françoise Dastur, “a tradução consiste em reescrever o texto, a fim de fazer aparecer o que realmente foi dito”.
Eu, você e ela: os Édipos
Óidipous, filho de Laios não é uma peça metalingüística sobre Édipo Rei de Sófocles, ou uma desconstrução (como o estupendo, e também desqualificado por Bárbara Heliodora, Ensaio Hamlet pela Cia. dos atores) e sim, como já dissemos, uma transcriação que estabelece um diálogo com o tragediógrafo grego e coloca em cena a essência do que a peça transmite – a relação entre o saber e a verdade – numa releitura contemporânea e brasileira. O resultado se encontra do lado de um público de variado grau de instrução que acompanha emocionado o desvendamento da verdade e sua negação por parte de Édipo, produzindo o efeito trágico, descrito desde Aristóteles, em que através do reconhecimento dos desastres da vida, e da catarse propiciada pela encenação (texto, música, espetáculo, atuação), o espectador sai do teatro tocado e revigorado. Afinal, Édipo sou eu, você e ela também.
O que se herda
Nossa releitura reintroduziu o tema da maldição (presente em Ésquilo) que Édipo, sem saber, herda do pai e influencia todos seus atos – o que não retira sua responsabilidade. Não se trata de "predestinação”, como propõe B.H., que é um termo vago e ultrapassado, e sim da herança simbólica e inconsciente que todos recebemos como seres humanos tecidos pelas histórias e desejos paternos e maternos.
Óidipous e a Esfinge
Oidipous, filho de Laios retoma os nomes dos personagens em grego não por um "anseio de originalidade" do autor, e sim pelo fato de a peça centrar-se na equivocidade significante em grego entre o enigma da Esfinge (dipous, tripous, tetrapous – dois, três e quatro pés) e o nome de Édipo (Oidipous = pé inchado, saber no pé).
Iokaste não sabia??????????
Quanto à Iokaste (desculpe, Jocasta) é surpreendente que ela afirme que em Sófocles ela quer “só buscar salvá-lo do sofrimento” ao vê-lo aproximar-se da verdade. Isso é retirar toda a complexidade do personagem dessa mãe que manda matar o filho ao nascer e, mais tarde, casa-se com ele e lhe dá quatro filhos malditos que também terão um fim trágico. Toda reflexão mais aprofundada sobre "Édipo Rei" deixa claro que era impossível Jocasta não saber que seu marido era o filho que sobrevivera a sua tentativa de filicídio.
A deglutição de Sófocles
Quanto à encenação, a referência aos índios brasileiros não é casual e sim explícita. Ela está presente na composição musical que utiliza elementos gregos e indígenas, nas máscaras dos índios do Xingu, nos bambus utilizados no coro como nas danças dos índios, etc. Trata-se de aproximar daqui e de hoje essa peça grega de 2.500 anos mostrando que o homem é o mesmo e, assim, apontar nossa origem grego-indígena – eis o que nossa "antropofagização" de Sófocles , como diria Zé Celso, produziu.
O estranho do Inconsciente trágico
O mito originário de Édipo é, como o Inconsciente, transcultural e estrutural. Daí o emprego dos coturnos, que os atores gregos utilizavam, para Oidipous e Iokaste (que os retiram ao fazer amor), como, as saias (da cultura oriental) para os personagens: vermelho para os reis e preto para o coro. O trono, constituído por um caixote com bambus, além das folhas secas são os únicos elementos cenográficos num palco vazio – como nos teatros gregos e tabas indígenas – enquadrado pelos músicos distribuídos em quatro cantos. Todos esses signos cênicos simples estão lá para serem lidos juntos à excelente direção de movimento de Regina Miranda que confere ao coro sua dignidade trágica. Se tudo isso pareceu “estranho” a B.H. parece que nossa peça alcançou seu objetivo ao trazer à cena o familiar enquanto estranho, que é justamente a característica, como mostra Freud, dos conteúdos do Inconsciente que nos são estranhos e, no entanto, familiares. Estamos assim também fiéis aos gregos cuja característica, como diz Hölderlin, é “o modo de assimilar naturezas estranhas e nelas compartilhar a si mesmo” (carta a Böhlendorff de 2/121802).