domingo, 1 de fevereiro de 2009

Carta de Édipo a Freud

Carta de Édipo a Freud do umbigo da Terra

Em Delfos









Numa viagem à Grécia que fiz em 2006, tive uma experiência extraordinária.


Após passar por Corinto, Micenas e Tebas, cheguei a Delfos, situada na encosta do Monte Parnasso, onde havia o famoso templo de Apolo e se ia consultar o oráculo através da Pitonisa.

Zeus, desejando encontrar o centro da terra, largou duas águias das extremidades do mundo; as duas aves sagradas encontraram-se em Delfos, determinando assim o "umbigo" da terra - o Ônfalo - por onde Apolo se pronunciava através dos sonhos.







O ônfalo (museu de Delfos)
Umbigo da Terra







Quando já ia saindo, perambulando pelas ruínas do templo, qual não foi minha surpresa de encontrar perdida, no chão, entre dois pedaços de coluna de mármore, uma carta toda amarrotada e bem envelhecida que de pronto apanhei. É esta carta, uma vez traduzida, que envio para os leitores do blog.

Kalimero (Bom dia), Dr. Freud,





Escrevo-lhe do templo de Apolo, em Delfos – ônfalo da Terra –, onde vim consultar o oráculo para saber de meu destino nos séculos vindouros. Esta carta deve ser aberta no aniversário de 150 anos de seu nascimento.



Antes de mais nada: parabéns Doutor Freud! Parabéns por ter mantido viva a mântica dos sonhos, essa prática da interpretação onírica inaugurada pelos mestres da verdade aqui na Grécia e ter dela feito o paradigma da ação do analista.






Apolo agradece.






Obrigado por ter revelado ao mundo que partilho com cada ser humano meus crimes e gozos como filho daquele que, se em sonhos não morreu, teria morrido por minha mão-fúria, e daquela com quem partilhei o parto-coito e me fez pairmão de minha filial fratria.

Que não me julguem erroneamente: minha presença é menos historieta familiar do que estrutura trágica que carrego com meu nome em cada ser-para-o-sexo, em cada ser-para-a-morte. Eu sou o Inconsciente.



Graças ao senhor, Dr. Freud, mestre moderno da Alétheia, o Desocultamento, isso hoje é por todos sabido. O senhor leu na tragédia que Sófocles escreveu sobre mim a verdade do desejo de todo o mundo. A tal ponto que hoje meu nome é indissociável do seu. Estamos amalgamados.







Como aos 150 anos de seu nascimento dizem que eu não mais existo? Que sou velho, ultrapassado, anacrônico? Ha, ha, ha! Acompanho ao longo dos séculos a macromedição de Cronos, vendo homens e mulheres vindo à luz, esmaecendo e apagando. Carrego em mim a lei e sua transgressão, o não-saber sabido de meu desejo e de meus atos, a divisão entre Tebas onde sou rei e Colono onde termino excluído, como bem escreveu Sófocles em sua última tragédia.





Teatro de Delfos

Dizem que o mundo está para além de mim? E que eu já estou ultrapassado. Parakalo! (Por favor!) O que chamam do "para-além de Édipo"está em meu próprio fim inscrito desde minha concepção. Nasci junto com minha morte. E alguém é diferente? Meu para-além escapa ao deciframento. Lá está ele! Lá onde a Erínias bebem o sangue da vingança das vítimas de Tânatos; lá no reino da dor de existir, no silêncio das tumbas. Onde cego, alquebrado, dejeto da civilização grito: Me funai! Antes não ter nascido! Até o para-além de mim, a mim é referido.

Não me venham com interpretações oportunistas dizendo que o mundo mudou e que eu sou uma invenção feita sob medida por um habitante de uma Viena fim de século! Sobreviverei, graças ao senhor, Dr, Freud, a todos aqueles que dizem que não sirvo mais para nada.

Como apagar a marca de castração, que o senhor captou, de meu ato de furar meus olhos? Cuja angústia é o sinal da realização de um gozo atingido para além do possível? É a marca de que ali o olhar se fez presente trazendo à luz o que não podia ser visto. Quando eu via, nada enxergava, quando abri os olhos à verdade da castração, ela os arrancou de minha visão. E pude então saber. Mas que travessia dolorosa foi-me necessária para chegar a esse saber!

Ao recusar-me eles enlouquecerão, pois estarão recusando o complexo lei-transgressão-castração chamado pelo meu nome. Retirem-me de cena e a psicose advirá: seja no imperial-terrorismo paranóico, seja na desagregação capitalista esquizofrênica.

Ao abrirem esta carta, no dia 6 de maio de 2006, o senhor terá uma legião de inimigos, como sempre teve aliás. Mas agora seus detratores, ameaçados, usam de tudo para denegri-lo e desconhecer minha existência trágica em cada um deles.

E isso em nome de quê? Da ciência, da religião e da ideologia capitalista? Sim, rejeitam a fragmentação dionisíaca da pulsão em nome do ideal, do comando e da tirania do Um. Esse Um tão entediante e mortificador. Recusam meu daimon, que o senhor chamou de pulsão, que na verdade é o daimon deles. Isso pouco os interessa e quando ele se manifesta tentam anulá-lo com entorpecentes. Parabéns, Doutor Freud por resistir a tudo isso e manter vivo o paradoxo da coexistência de daimon e logos.


Nascerei tantas vezes quanto me matarem pois trago o marco do desejo indestrutível em minha tragédia, o marco da estrutura em meu mito, e o marco do saber em meus pés. Sim sou capenga, coxo e claudico e assim me mantenho nas andanças do ser: ao pé da letra. Graças ao senhor, Doutor Freud os homens sabem que eles sou eu: um manco. Manco, sim. Um manco que pode dançar no coro dos discursos.

Obrigado Doutor Freud por fazer meu percurso, como Sófocles o descreveu, ser reencenado a cada análise fazendo cada sujeito proceder a uma investigação sobre a origem, o Eros e o ato. Diante do deus-que-porta-o-fogo esfolando a polis – praga amarga – despovoando as moradas cadméias e o Hades negro se enriquecendo de lágrima e lamento, eu rei de Tebas comandei a investigação procurando o culpado de tantos males.

A tumba de meu pai – eu não o sabia – era um olho enorme a olhar-me. Eu seria um homem vil se à verdade me furtasse após ter sido louvado como o decifrador da ríspida cantora a Esfinge, cadela das rapsódias.


A Esfinge (Museu de Delfos)


É verdade, não ouvi de Tirésias, o adivinho cego-que-vê: “Sabes ser o horror dos teus? Com o terror nos pés, a maldição mater-paterna, açoite duplo, há de expulsá-lo daqui”. E a ortovisão me anunciou meu triste fado. Eu salvador da polis era seu destruidor. Movido pelo desejo de saber – o terá sido minha paixão da ignorância ?– não me detive – nem mesmo quando minha mater-esposa gritava: “encerra a busca!”. Não o destino não a previra: a busca foi escolha minha. Não recuei diante de obstáculo algum até ver o impossível. O senhor teve a coragem de buscar-me em cada ser e, amorosamente, levá-lo, a saber o que já é dado, e a poder transformar a infelicidade do destino no efeito trágico do entusiasmo pelo saber.



Parabéns, Doutor Freud.

Assinado: Édipo



Obrigado a todos pela atenção,
Antonio Quinet






Um comentário:

  1. Quinet
    Sua carta de Édipo a Freud é uma jóia.
    Ela me deixou ainda mais ansioso para assistir a seu trabalho no teatro.
    Abraço
    José Castello (escritor, jornalista, colunista do Jornal "O GLOBO")

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