quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Apolíneo + Dionisíaco = Tragédia

Dois impulsos estéticos
constituem a arte trágica


Em o Nascimento da tragédia, Nietzsche atribui o efeito trágico à conjunção de dois trieb, “duas pulsões que chamarei de dois impulsos estéticos: o apolíneo e o dionisíaco”[1]. A arte do apolíneo é arte figurada (ex. artes plásticas) e a arte de Dionísio é a arte não figurada como a da música. A conjunção de ambas geraram a tragédia ática.



Nietzsche por Munch (1906)


O apolíneo é o âmbito da figuração, da bela aparência, do mundo dos sonhos (o sonho como figuração plástica) e das fantasias, do poder divinatório característica do deus Apolo, a quem os gregos erigiram um santuário em Delfos onde se situava o Ônfalus, umbigo do mundo.






O dionisíaco é a “exceção ao princípio da razão”. É a embriaguês, o delicioso êxtase, da beberagem narcótica à alegria pela aproximação da primavera após o inverno passando pelo terror e pela violência dionisíaca que arrasta multidões cantando e dançando bramando a vida candente, como no carnaval (carnevale – festival da carne). O transporte dionisíaco[2] faz o subjetivo se esvaecer. Cantando e dançando o homem desaprendeu a andar e a falar, e está aponto de sair voando pelos ares. O homem caminha agora extasiado e enlevado. Na arte o sujeito em fading caminha acéfalo ao comando das batidas da pulsão. “A força artística revelou-se sob o frêmito da embriaguês”. A arte advém quando o sujeito se esvai diante do objeto; “o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte”.

O Culto a Dionísio: origem da tragédia
A tragédia desenvolveu-se a partir do culto a Dionísio com as orgias dionisíacas passando pelo ditirambo dionisíaco (canto com coro e solista) onde os participantes são incitados “à máxima intensificação, segundo Nietzsche, de todos as suas capacidades simbólicas”[3].
No culto com as festas se alcançava o “júbilo artístico” e se presentificam a “maravilhosa mistura dos afetos do entusiasta dionisíaco” constituindo o “fenômeno segundo o qual os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos”. Na música dionisíaca “da mais elevada alegria soa o grito de horror ou o lamento por uma perda irreparável”[4].

Dionísio é o deus da transformação e da duplicidade e da fragmentação trazendo em seu mito vida e morte conjugados. Filho de Zeus e Perséfone foi esquartejado pelos Titãs e em seguida, Atenas reuniu seus pedaços e os entregou a Zeus. O costurou em sua coxa e proporcionou-lhe um segundo nascimento. Foi então que entregou a Sileno, sátiro sábio, para ser seu preceptor.

Deus despedaçado, símbolo da abolição do sujeito por ter sido morto e depois revivido, Dionísio é o símbolo da ambigüidade e duplicidade. Deus da transformação, ele é o deus do teatro. Sobre aquele que educou Dionísio, Sileno, relata-se, segundo Nietzche, que à pergunta do rei Midas que queria saber do sábio o que era o melhor e o preferível para o homem, respondeu: “Antes não ter nascido e nada ser. Depois disso o melhor é morrer o mais rápido possível”. É o que encontramos cantado pelo Coro de Édipo em Colona, comentado por Lacan: Me Funai! Antes não ser¹



O apolíneo, como defesa ao dionisíaco
Diante dos temores e horrores do existir, os gregos criaram a cultura apolínea da beleza com o louvor à vida com harmonia e prudência instaurando a medida, a observação das fronteiras do indivíduo. Ao lado da necessidade estética da beleza colocaram a exigência do “conhece-te a ti mesmo” e o “nada em demasia”, frases inscritas no templo de Apolo, em Delfos.


Dioníso X Apolo

A revolta do dionisíaco
“Imaginemos, diz Nietzsche, como nesse mundo construído sobre a aparência e o comedimento, e artificialmente represado, irrompem o tom extático do festejo dionisíaco em sonâncias mágicas cada vez mais fascinantes, como mostra todo o desmesurado da natureza em prazer, dor e conhecimento. Até o grito estridente devia tornar-se sonoro; imaginemos o que podia significa o demoníaco cantar do povo em face aos artistas com seus salmos diante de Apolo com os fantasmais arpejos de harpa!”[5]

Todos os preceitos apolíneos são aí esquecidos e a hybris revela-se como a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores. “E em toda parte onde o dionisíaco penetrou, o apolíneo foi suspenso e aniquilado”. O êxtase do estado dionisíaco conduz ao “aniquilamento das usuais barreiras e limites da existência”[6].

A conjunção do dionisíaco e o apolíneo: a tragédia
É a expressão do dionisíaco através da forma apolínea que vamos encontrar na arte da tragédia grega do séc. V a.C. herdada no culto de Dionísio e dos ditirambos (canto coral composto por um solista e um coro que dança, toca e canta). “O coro ditirâmbico, diz Nietzsche, recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco para que, quando o herói trágico aparecer no palco, eles não vejam um homem mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios”[7].


O dionisíaco da tragédia, trazido principalmente pela música, confere ao mito a mais profunda significação. Se não fosse a tragédia, o mito perderia sua função de ser o arauto da verdade, ou seja, uma modalidade de (semi)-dizer a verdade: a verdade de sua descontração mantendo seu enigma. A tragédia ao colocar o mito em cena com a poesia e a música restaura seu poder de transportar o gozo e suas vicissitudes.

A música, essência da tragédia
A música dionisíaca na tragédia faz o mito florescer pois o destino do mito é “arrastar-se pouco a pouco na estreiteza de uma suposta realidade histórica e ser tratado como um fato único com pretensões históricas”[8]. A música, para Nietzsche, é a essência da tragédia, “essência que cabe interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados dionisíaco”... “como mundo onírico de uma embriaguês dionisíaca”.[9]

Acolher o dionisíaco na arte
Enquanto Apolo rege a medida, a harmonia, a ordem e a proporção criando as formas e a beleza, Dionísio rege a hybris, desmedida, volúpia da dor e do sofrimento, a indiferenciação que em estado puro levaria até o aniquilamento da vida. Para Nietzsche não se trata de afastar, negar ou rejeitar o dionisíaco, mas de recebê-lo para que ele se expresse através das formas apolíneos, sem se deixar subjugar por estas. O resultado dessa conjunção artística foi a tragédia grega - fenômeno que durou um século.



Teatro de Dionísio (Atenas)

Eis, a meu ver, o que faz Freud dizer que Nietzsche foi “o primeiro psicanalista”, ao render homenagem a ele em entrevista aos 70 anos, pois aí poderíamos reconhecer a proximidade dos conceitos de Eros e pulsão de morte com as “pulsões” (trieb) descritas por Nietzsche[10].


Trecho extraído do texto de Antonio Quinet A Tragiorgia, publicado em Stylus, Revista da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, vol. 17, 2007.


[1] Nietzsche, O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo, 1992/2006.
[2] Nietzsche, Ibid., p. 30.
[3] Nietzsche, Ibid, p. 35.
[4] Nietzsche, Ibid, p. 34.
[5] Nietzsche, op. cit. p, 41.
[6] Nietzsche, op. cit. p. 55.
[7] Nietzsche, op. cit. p. 62.
[8] Nietzsche, op. cit., p. 71.
[9] Nietzsche, op. cit., p. 90.
[10] Freud entrevistado por George Sylvester Viereck in A Arte da Entrevista (org. Fábio Altman), 2004.

2 comentários:

  1. Evoé, Evoé!
    Saudações a Zoé !

    Dioniso é o deus da exaltação da alegria, do prazer, o vinho, do amor e da exuberância excessiva, voltado para o riso que liberta e para a comunhão com a natureza selvagem. Dionisio é o deus que o filósofo Nietzsche disse ser um discípulo na sua famosa frase: “Prefiro antes ser um sátiro a um santo”.

    Dioniso é o deus das múltiplas faces, o deus mascarado que convida os homens ao desafio de vê-lo por sob a máscara ou, quem sabe, a partir dela.
    Dioniso é o deus que deve ensinar os homens “a ver o que é preciso ver” , isto é, “a ver o que mais evidente sob o disfarce do mais invisível”, conforme Eurípedes nos mostra na peça “As Bacantes”.
    Porém, o que é mais evidente e ao mesmo tempo mais invisível senão o eterno devir incessante do mundo, potência dionisíaca a subverter todas as categorias lógicas ligadas à identidade e à essência.
    Dioniso cancela as categorias que impõem uma dicotomia, não se localizando numa significação específica, mas circulando entre ambas.
    Se Apolo é o princípio da identidade, Dioniso é o deus da diferença que, embaralhando os códigos, desconstruindo as aparências, faz com que se comuniquem as categorias antagônicas, confundindo-as e subvertendo-as enquanto conjuntos fechados.
    Jogo de presença e ausência, a divindade está sempre em movimento, forma em perpétua mudança, em sua epifania, múltipla e incessante, se mostra ao mesmo tempo masculino e feminino, jovem e velho, longínqüo e próximo.

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  2. Boa tarde!
    Não assisti a peça ainda. Gostaria de saber quando vocês estarão em São Paulo?
    Venham pra cá, tenho certeza que o público aqui será grandioso.

    Abraços,

    Paula Martins

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