segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Édipo entre a visão e a cegueira:
o olhar no teatro trágico*
Antonio Quinet


Será que encontramos a estrutura edípica descoberta por Freud na peça de Sófocles? Jean-Pierrre Vernant e Jacques Lacan não pensam que Édipo de Sófocles tenha o complexo de Édipo.[i]
Para Freud, o que se passa com Édipo situa-se no nível do inconsciente, do desejo inconsciente de matar o pai e unir-se à mãe. Mas é a instalação da lei no sujeito que interdita a mãe para o sujeito que constitui efetivamente o complexo de Édipo. Nesse sentido, Édipo não tem o desejo edipiano marcado pela proibição e pela falta, pois ele mata o pai e possui a mãe. O que caracteriza Édipo é que ele de fato possui o objeto do desejo e da lei e, além disso, vê o que fez. O fato de ver o que fez, diz Lacan, “tem como conseqüência que ele veja, no instante imediato, seus próprios olhos entumescidos com o seu humor como tumores vítreo no chão, num confuso monte de imundices pois, por tê-los arrancado das órbitas, perdeu, evidentemente, a visão. Entretanto, não deixa de vê-los, sê-los como tais, como o objeto-causa enfim revelado da última, da derradeira concupiscência – não mais culpada, mas fora dos limites – a de ter querido saber.” E Lacan acrescenta que é a partir desse momento em que se arranca os olhos que Édipo se torna vidente e chega até a prever, quando mais tarde se encontra em Colona, o destino da cidade de Atenas.[ii]
Lacan prefere situar o impulso de saber não do lado da pulsão, mas do lado do desejo: desejo de saber.

O Édipo entre saber e verdade
Para Lacan, a esfinge sustenta o enigma que encarna por seu semi dizer a questão da verdade e o Édipo: “ao responder-lhe – aí é que está a ambiguidade –, acaba suprimindo o suspense que a questão da verdade introduz no povo”.[iii] Édipo cai, efetivamente, na armadilha da verdade, pois ao responder “é o homem” como solução do enigma, o que é eludido e afastado é a verdade do sujeito Édipo e, no entanto, no próprio enunciado do enigma (qual ser que é ao mesmo tempo dipous, tripous, e tetrapous?) pode-se encontrar uma alusão, pela equivocidade da linguagem, ao seu nome (Oi-dipous). De fato, esse enunciado designa o destino de Édipo, destino de um ser que ao mesmo tempo tem dois, três e quatro pés. Trata-se sem dúvida de Édipo, quer dizer do homem “que na progressão da idade não respeita, como diz Jean-Pierre Vernant, pelo contrário mistura e confunde a ordem social e cósmica das gerações. Édipo adulto bípede é de fato, idêntico ao seu pai, o velho cujos passos tem o auxílio de um bastão, o trípede cujo lugar ele tomou como rei de Tebas até mesmo no leito de Jocasta – idêntico também a seus filhos, engatinhando com quatro patas e que são ao mesmo tempo seus filhos e seus irmãos”.[iv] A resposta ao enigma da Esfinge é, de fato, Édipo propriamente dito.

De rei a dejeto
Quem é Édipo? Assim como a fala do oráculo e da esfinge, seu próprio discurso é sempre ambíguo, com duplo sentido, equívoco. A ambiguidade e a equivocidade significantes são, com efeito, meios de expressão e modos de pensar próprios da tragédia grega. Mas a análise de Jean-Pierre Vernant nos ensina que “o equívoco nas palavras de Édipo corresponde ao estatus ambíguo que lhe é conferido no drama e sobre o qual se constrói toda a tragédia“.[v] Verifica-se essa ambigüidade em uma série de inversões que o personagem de Édipo sofre: ele é um no início e outro no final, sendo, no entanto, desde o início aquele que se revela ser no fim. O estrangeiro é, de fato, um nativo de Tebas; o decifrador de enigmas é, ele mesmo, um enigma que não consegue decifrar; o justiceiro se revela um criminoso; o vidente é cego; o salvador da cidade traz sua perdição. “Édipo, aquele célebre para todos, o primeiro dos humanos, melhor dos mortais, o homem do poder, da inteligência, das honras e das riquezas, revela-se o último, o mais miserável e o pior dos homens, um criminoso, um dejeto, objeto de horror para seus semelhantes, odiado pelos deuses, reduzido à mendicância e ao exílio”.[vi] O eixo em torno do qual giram todas estas inversões é aquele no qual em um pólo se encontra o rei divino e no pólo oposto o pharmakós (o bode expiatório), escória da sociedade, a mácula da cidade.[vii]
Se tyrannés e pharmakós, rei e escória fazem de Édipo, como diz Vernant, o “modelo da condição humana”, o ‘símbolo do homem e da sua ambigüidade fundamental”, é porque a peça de Sófocles apresenta o herói nos dois status do ser falante isolados pela psicanálise, isto é, como sujeito e como objeto. No desenrolar da peça, o espectador acompanha a travessia de Édipo que passa de sujeito a objeto.
O sujeito Édipo é rei do significante, é aquele que possui o saber da decifração, aquele que joga com as palavras; sujeito desejante e que conduz o jogo; animado pelo desejo de saber a verdade é ele quem comanda a busca, ele é, o investigador, o descobridor. Pouco a pouco revela-se sua condição de objeto: é ele o objeto da busca, ele é descoberto, mais conduzido do que condutor, objeto causa da peste. Ele é um objeto igual a nada [1187-1188] – não é nada no desejo do Outro: não desejado, é fruto de um lapso de Laio que fora amaldiçoado por seduzir o jovem Crisipo, filho de Pelops que o hospedava. Para se precaver contra o oráculo que lhe predissera que seria morto por seu filho, Laio teria tido praticado somente o coito anal com Jocasta para não ter filhos de espécie alguma. Édipo teria sido o fruto de uma relação sexual em que Laio, bêbado, teria esquecido a maldição que, ao fecundar um filho, se cumpriria. .
Ao nascer, seus pais o consideram um refugo do qual querem se desvencilhar. Édipo reencontra, quando descoberto e banido, esse lugar de nada na medida em que é o dejeto a ser expulso da cidade. Uma vez revelado seu status de objeto a, Édipo não tem mais lugar na Pólis, que representa aqui a ordem social enquanto ordem simbólica. Ele que era o rei do significante – e da decifração - não tem mais lugar na ordem significante – perde a coroa de sua representação. Como o objeto a é o que escapa àquilo que no homem é civilizado, Édipo aparece como desumano, do lado do phaúloi, do pharmakós, “eliminado do lugar social, expelido para fora da humanidade. Ele é de ora em diante ápolis; ele incarna a figura do excluído.”[viii]
Essa travessia de sua posição de sujeito para a de objeto que Édipo realiza faz-se no domínio do escópico, ali no palco onde a pulsão se satisfaz como Schaulust, o gozo do espetáculo.

O sofrimento medonho de olhar
A peça de Sófocles Édipo Rei é uma ilustração das transformações da pulsão escópica (pulsão de ver-ser visto ou pulsão voyerista-exibicionista), da articulação entre o ver e o saber, o ver e o dar-a-ver, e a esquize entre o olho e a visão.
O olhar está no primeiro plano desta peça de teatro, cujo objetivo primeiro é a encenação - o dar-a-ver faz parte da estrutura do espetáculo teatral. O olhar é também a estrela principal de Oidipus tyrannus. Não apenas pelo fato de que contamos cento e dezoito ocorrências de termos relativos ao ato de ver[ix], mas, sobretudo, por causa da abertura progressiva dos olhos do herói, levado pelo desejo de saber devido à ação da pulsão escópica. A peça inteira se sustenta na esquize entre a visão e o olhar.
O desenrolar da peça vai da cegueira dos fatos à cegueira de fato, do cego que se revela clarividente e do clarividente que se mostra cego. Quando a verdade dos fatos descobertos durante a investigação iam saltando aos olhos, Édipo nada via; quando ele a vê, fura os próprios olhos.
Na peça, o olhar como objeto a apresenta-se inicialmente como objeto causa da clarividência. Ele está presente lá onde falha a visão: em Tirésias, o cego que “vê” para além do espetáculo do mundo. Isto significa que nessa tragédia o objeto olhar está do lado do saber e a visão do lado do desconhecimento. De um lado Tirésias o cego que sabe, do outro lado Édipo que vê mas nada sabe. Nessa divisão o olhar está para Tirésias como a visão está para Édipo. Mas Édipo é animado pelo desejo de saber cuja causa é o objeto olhar que, no início está velado, em seguida emerge através das testemunhas (oculares) e no final aparece claramente em cena aberta: Édipo cego torna-se puro objeto do olhar do outro.
Na passagem de sujeito a objeto, Édipo nos leva da visão ao olhar. Enquanto sujeito, Édipo é homem de visão, o espírito esclarecido que vive na luz desprezando as trevas; no ativismo da observação, ele é impelido a ver claramente as coisas tais como são, exigindo que a luz se faça sobre elas. Mas ele é também objeto do olhar do Outro: os espectadores que, como os deuses e Tirésias, conhecendo seu destino, o vêem correr cegamente para sua perdição; olhar das pessoas da cidade, pois ele enfrentou a esfinge “`a vista de todos” e por isso foi considerado sábio [505, 510]. A passagem da posição de sujeito para a de objeto no campo escópico dá-se no processo que vai do ver ao ser visto, do não-saber ao saber, do desejo de ver ao gozo do olhar. Se o processo da busca que o aproxima da verdade é progressivo e gradual, a passagem de Édipo sujeito para a posição de objeto dá-se bruscamente, em corte, no momento do ato de cegar-se. Édipo arranca os olhos para romper com a visão.
Eis a justificativa da autoenucleação: “Não sei com que olhar ao chegar a Hadès, eu encararia meu pai ou minha desafortunada mãe... [1371-74]; “Depois de ter revelado em mim mesmo tal mácula, poderia olhar para estas pessoas sem baixar os olhos?” [1384-85] Ao descobrir seu crime, ele se vê como uma mancha no quadro tebano – ele é a mácula do reino. O ato de cegar, praticado com o broche de Jocasta é perpetrado quando ele vê o cadáver da mãe que se enforcara, isto é, ele se cega quando vê pela primeira vez sua mulher como a mãe por ele possuída. Ele vê sua mãe morta com seu corpo nu dependurado. A castração é o preço por ter possuído sua mãe e é com os olhos que ele paga. Édipo torna-se, então, puro olhar, como objeto mais-de-gozar, por ter se defrontado com o gozo incestuoso da mãe, cuja vista é impossível suportar, causa de horror. “Oh! sofrimento medonho de olhar. Não tenho forças de voltar os olhos para ti, entretanto, eu gostaria muito de te interrogar, de te ouvir, de te olhar: tal é o arrepio de horror que me causas”. [1296-1306]. Pois, no final eis o que, no dizer de Lacan, lhe acontece: “não é que a venda lhe caia dos olhos, são os olhos que lhe caem. Não é neste objeto mesmo que vemos Édipo reduzido não a sofrer a castração, mas antes, eu diria, a ser a própria castração? Ou seja, aquilo que resta quando desaparece dele, na forma de seus olhos, um dos suportes preferenciais do objeto a".[x] Em seu status de objeto escópico, Édipo é o mais-de-olhar.

A hora do olhar
O objeto causa do desejo de ver que movia Édipo revela-se no final como sendo o olhar e o saber torna-se olhar, le savoir aparece como ça voir, como faz aparecer o termo grego Oída (eu sei, eu vi).
A pulsão escópica arremata seu circuito: o sujeito torna-se seu objeto e advém ao saber. No final, encontramos o duplo sentido de seu nome, Oidipus: junção de Oída (eu sei) e Poús (o pé), o saber em sua conjunção com sua marca de exclusão, de rejeição do Outro. O pé inchado, significado de seu nome próprio tratado como nome comum, é, de fato, a marca recebida logo após seu nascimento, como um condenado à morte. Trata-se também daquilo por intermédio do qual mais tarde ele é reconhecido: marca no corpo de seu destino que o condena ao exílio do simbólico. O “pé inchado” é a peça de delito no processo de produção (no sentido jurídico) de seu destino. A produção do destino do sujeito o coloca diante de sua própria castração – status do sujeito enquanto barrado – e traz de novo a cena o objeto olhar.
Quando via a luz, Édipo estava cego para o saber; agora que privado da visão é a hora do olhar que acompanha o saber conquistado – Édipo perde o trono, sua posição no significante, de onde ele via o mundo de cima, para tornar-se um cego errante, clarividente. O olhar é, doravante, o agente: repousa no saber sobre a verdade, como no discurso do analista.[xi] Édipo, diz-nos Lacan, “representa o saber com pretensão de verdade, isto é, o saber que se situa na figura do discurso do analista no lugar do que chamei discurso da verdade.”
Ao responder como “homem”, como se fosse toda a verdade, Édipo a afasta. Poderíamos dizer que, nesse momento, Édipo nada quer saber de sua verdade; no enunciado enigmático da esfinge ele nada vê. Mas a verdade – representada aqui pela verdade do seu destino – retornará na forma da peste que deverá novamente ser interpretada. E é aí que a peça de Édipo Rei começa. Édipo, apesar de suas idas e vindas, jamais recua diante da revelação de sua verdade – ele é impulsionado pelo desejo de saber. Nada o obriga a levar sua investigação até o fim; pelo contrário, Tirésias, Jocasta, o coro, o pastor, todos tentam inutilmente detê-lo e dissuadi-lo. Mas ele não cede de seu desejo, não abre mão de “seu desejo apaixonado de conhecer a verdade a qualquer preço”.[xii]
Vemos através dessa peça de Sófocles, que na antiguidade, não só na ótica, na filosofia, e nos mitos mas também no teatro, o olhar, com seu caráter pulsional (de desejo ou de gozo) está presente. A articulação entre o saber e o olhar que aí encontramos é um fato estrutural como nos demonstra a teoria do objeto olhar e da pulsão escópica na psicanálise.

* Sub-capítulo do livro de Antonio Quinet Um olhar a mais – ver e ser visto na psicanális, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2004 (2002).
[i] Cf. J.-P. Vernant, “Oedipe sans complexe”, Oedipe et ses mythes, p.1-23; Jacques Lacan, O Seminário, livro 17, p.33-4.
[ii] Cf. Jacques Lacan, O Seminário, livro 10, sessão de 6.3.1963.
[iii] Jacques Lacan, O Seminário, livro 17, p.113.
[iv] J.-P. Vernant, “Le tyran boîteux: d’Oedipe à Périandre” in Vernant, J.-P e Vidal-Naquet, P. Oedipe et ses mythes, p.63-4.
[v] J.-P. Vernant, “Ambigüité et renversement. Sur la structure énigmatique d’Oedipe-Roi”, Oedipe sans complexes, op. cit., p.27.
[vi] Ibid., p.31-2.
[vii] Segundo Vernant, esse aspecto de bode expiatório foi pouco destacado pelos comentaristas. “Os bodes expiatórios eram pessoas recrutadas na ‘ralé da população’ que deveriam ser expulsos através de um ritual para purificar a cidade e liberá-la da sujeira, ao qual a população participava. Isto era feito segundo um rito anual ou quando um loimós era deflagrado devido a um crime. No que tange a Édipo Rei, vemos que Tebas sobre um loimós que se manifesta segundo o esquema tradicional, por um esgotamento das fontes de fecundidade: a terra, os rebanhos, as mulheres não produzem mais, enquanto que uma peste dizima os que vivem. Esterilidade, doença e morte são percebidos como uma mesma mácula, um miasma que desregulou todo o curso normal da vida. Trata-se, portanto, de descobrir o criminoso que é a mácula da cidade ...” op. cit., p.39.
[viii] J.-P Vernant, op. cit., p. 33.
[ix] Cf. M. Milner, “Le yeux d’Oedipe” in On est prié de fermer les yeux. Paris, Gallimard, 1991, p. 67.
[x] Jacques Lacan, op. cit., p.114.
[xi] O esquema dos discursos propostos por Lacan admite quatro lugares (o do agente, da verdade, do outro e da produção) e quatro elementos (S1 – o significante mestre, S2 – o saber, – o sujeito, e a – o mais-de-gozar). No esquema estrutural do discurso do analista, o mais-de-gozar age sobre o sujeito apoiado no saber no lugar da verdade para produzir o significante mestre que sela o destino do sujeito. Cf. Jacques Lacan, “Radiophonie” in Scilicet, 2/3, p.99.
[xii] J.-P. Vernant, “Ambigüité et renversement. Sur la structure énigmatique d’Oedipe-Roi”, Oedipe sans complexes, op. cit, p.27.

Nenhum comentário:

Postar um comentário