terça-feira, 20 de outubro de 2009

O encantamento musical

Espetáculo Óidipous, filho de Laios encanta pública com efeitos sonoros
Extraído de: Prefeitura de Vitória - 15 de Outubro de 2009

Muitos efeitos sonoros fizeram parte do espetáculo teatral Óidipous, filho de Laios - A história de Édipo Rei pelo avesso, do grupo teatral Cia. Inconsciente em Cena (RJ). A peça foi apresentada na noite desta quarta-feira (14) no Teatro Universitário da Ufes, compondo a programação do segundo dia do V Festival Nacional de Teatro Cidade de Vitória.

Depois da apresentação, o palco do teatro deu espaço para uma palestra com o diretor da peça, o dramaturgo Antonio Quinet, e o artista plástico Gilbert Chaudanne, conhecedor de Nietzsche. O bate-papo girou em torno de vários pontos da produção teatral, entre eles a relação da psicanálise na adaptação.


Tragédia grega no palco

Óidipous, filho de Laios - A história de Édipo Rei pelo avesso é uma adaptação do original Sófocles Édipo Rei. A história foi contada com uma trilha musical executada ao vivo e chamou atenção do público com as indumentárias e a intensa dramaticidade da trama. O mito do Édipo Rei, interpretado na peça, é uma das bases da psicanálise.

atriz Aline Dias, que já tinha lido a obra que deu origem à peça, destacou a importância de uma adaptação como essa ser apresentada no Festival de Teatro. "O teatro nasceu na Grécia e essa tragédia tem que ser mostrada para o público porque trás um clássico muitas vezes esquecido. Isso só enriquece culturalmente as pessoas que estão assistindo", apontou.

Para o universitário Tiago de Carvalho, um dos pontos principais do Festival Nacional de Teatro Cidade de Vitória é fazer o intercâmbio cultural, trazendo peças de outros estados, como a adaptação de Édipo Rei, do Rio de Janeiro.

"Um festival como esse é muito bom porque traz peças diferentes, fora do circuito local. Isso ajuda a formar um público de teatro. Além disso o evento é gratuito e muitas pessoas, que às vezes não podem pagar, têm uma grande oportunidade agora", ressaltou.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O Real, o Simbólico e o Imaginário em Óidipous

A subjetividade teatralizada
A análise da tragédia grega implica considerar o pensamento grego distinto do atual. O homem grego era alguém profundamente implicado e próximo de seu ato. Isto quer dizer que pensar era, para ele, agir. Talvez, por isso, os poetas se preocupassem em representar teatralmente o que se passava na esfera subjetiva; não porque eles soubessem do inconsciente, mas porque era fundamental dar nome ao que se experimentava. Assim, Sófocles foi considerado, por Aristóteles, o “príncipe dos trágicos”, e seu Édipo Rei, a mais sublime e perfeita das tragédias, posto que ela é a encenação da experiência de engendramento do desejo, “a cena sobre a cena” onde o drama da existência tem lugar, articulando os planos do ator e do espectador num único enquadre. E, tomado essa perspectiva atemporal do drama do desejo, parece-me fundamental fazer um comentário sobre a leitura que Antonio Quinet faz dessa mesma tragédia.

O psicanalista artista
Toda vez em que um psicanalista é chamado a falar fora de seu consultório, ele não está, obviamente, no lugar que lhe cabe, o da direção do tratamento de seus analisandos. Quando ele reflete sobre alguma questão outra, sobretudo no campo da cultura, sua posição é a de se deixar ensinar pelo que escuta/olha, aprendendo com a arte o que nela precede sua formalização teórica. Assim, é porque o campo do desejo circunscreve na arte o material de seu efeito, que, podemos dizer, o artista nos dá, sem saber, acesso ao lugar da letra inconsciente do autor da obra.

O tempo da tragédia
No teatro, as coisas se passam na temporalidade do dito. As unidades da ação, do lugar e do tempo, tão caras ao teatro grego, juntam-se na sincronia de uma representação cujo ponto de partida é a articulação ente mito, coro e ditirambo. Num certo sentido, o teatro grego oferece a estrutura do inconsciente na cena representada. A “cena sobre a cena” recobre a divisão subjetiva do ator/espectador. Tempo real do nascimento da cultura ocidental.
Sem entrar num desenvolvimento detalhado, poderíamos dizer que a tragédia de Sófocles, Édipo Rei, explicita a força do desejo no seu desafio à ordem da cultura e da história, mostrando o conflito entre demanda e desejo, entre a dívida simbólica e a liberdade do desejo.
Seria o caso de perguntarmos: que sentido tem hoje o fenômeno trágico e a tragédia? Se o mundo contemporâneo admite o trágico, em que medida e de que maneira ele pode ser vivido?
O teatro da vida dentro do teatro, tão bem encenado por William Shakespeare, mostra-nos que o trágico vai-se modificando ao longo do processo de elaboração, de simbolização da experiência do sujeito. Por isso, cada autor tem do trágico uma leitura que lhe é singular e que depende do momento experimentado na elaboração de seu texto.

A força do desejo
Se toda escrita se realiza não só com os significantes, mas também e sobretudo com a letra no inconsciente, então a leitura de uma obra como Édipo Rei deve ser entendida no contexto e na temporalidade em que é mostrada. Aliás, não é possível outra fidelidade que a explicitada por cada dramaturgo na condição de autor/leitor da obra. Sua liberdade de criar sobre o texto original é a da medida de seu desejo, sendo ele o único sujeito da crítica cujo mérito é indiscutível; porque seu trabalho de elaboração resulta da peça encenada, sendo esta a mostração do que pode receber como transmissão de perda de sentido do que, no texto do autor original, é resto a ser nomeado.
Se, como diz Aristóteles, na Poética, “aquele que escreve está altamente comprometido com o seu escrito”, é porque, ao escrever, o sujeito dá lugar ao que de mais íntimo habita seu pensamento. Ao escrever, o autor/dramaturgo é comandado, sobredeterminado pelo que lhe é mais íntimo e mais estranho. Algo que pulsionalmente o excede, fazendo-o conhecer as coordenadas do autor secreto que o habita, verdade de um saber que desconhecia e que, de fato, o faz autor/leitor da obra.

RSI em Óidipous
Antonio Quinet oferece-nos, com sua Óidipus, filho de Laios, uma leitura pelo avesso do drama clássico de Sófocles, Édipo Rei.
Chama a atenção do espectador, a leitura da tragédia contemporânea que Quinet oferece do ponto em que a função paterna, estruturada na experiência edípica de cada sujeito, claudica na ilusão civilizatória de nosso tempo. Os três planos em que estrutura sua montagem articulam-se como Real, Simbólico, Imaginário do nó borromeano.
Ao Real, corresponderia a tragédia original, estrutura da cena do engendramento do sujeito. O drama é a experiência traumática de defrontamento do sujeito com a verdade de seu desejo. O plano Simbólico, achamos que está representado pela elaboração do espectador que lê a cena com a letra de sua própria experiência inconsciente. A ela, se articula, como derradeiro plano, o Imaginário indígena, onde as tribos primam pela transmissão oral de sua cultura, tal como ocorria na Antiga Grécia. Nesse caso, porém, o que tem valor de sintoma é o fato de sua existência, como “cultura diferente”, ser denegada pela cultura oficial. Os indígenas são considerados estrangeiros à nossa cultura, muito embora sejam os verdadeiros nativos da terra que ocupam. Por que será que a transmissão da civilização grega pode ser eficaz e as culturas primevas de nosso tempo não? Esta é, a meu ver, uma questão a ser pensada, pois, em alguns aspectos, por exemplo, na preservação ambiental, os indígenas estão a nossa frente.

A música e o abismo da significação
Um outro importante ponto da peça a ser mencionado é o uso da música. Não tanto a que se faz ouvir a partir dos instrumentos musicais, mas a que emana das palavras em grego. A forte sonoridade dessas palavras convoca um “abismo de significação”, conforme foi mencionado por José Eduardo Costa Silva, no debate no SESC Copacabana. Penso, contudo, que essa sonoridade margeie outros sentidos, como o da perda necessária da significação original do texto, uma vez que o trágico grego não corresponde à apreensão contemporânea do trágico, mesmo que saibamos que o que faz a tragédia ser eterna é o fato de ela ser inerente à experiência de todo sujeito na sua relação com o mundo.

Teresa Pallazo Nazar, psicanalista (Escola Lacaniana de Psicanálise)

domingo, 18 de outubro de 2009

V Festival Nacional de Teatro em Vitória

Vitória em Óidipous

Quero parabenlizar Antonio Quinet e todos os integrantes da Cia. Inconsciente em Cena pela belíssima apresentação de Oidipous no V Festival de Teatro de Vitória ES no dia 14 de outubro.
Os 650 lugares do Teatro da UFES foram esgotados, e todo esse público silenciosamente, acompanhou emocionado e atentamente o desenrolar da tragédia.
Esta foi à terceira vez que assistir a esse espetáculo, e a terceira vez que me emocionei com a estética e densidade desta peça. Porém, esta última apresentação trouxe algumas modificações e novos elementos que tornaram a peça mais bela, a movimentação cênica mais madura e trágica, como:
A participação brechtiana do diretor Antonio Quinet, trouxe maior compreensão à história de seus personagens, além de oferecer ao espectador um tempo de reposicionamento e direcionamento do desenrolar trágico.
A música de José Eduardo Costa Sila executada ao vivo que é belíssima, nos envolve na trama do espetáculo, levando-nos a sermos partícipes da ação.
Ao trazer para o palco, o Avesso da tragédia Édipo Rei de Sófacles de 2500 anos, somos convocados ao encontro com nossa determinação significante, a nossa pouca liberdade como sujeitos, através do desvelamento das causas que levaram Édipo ao encontro trágico de sua história.
Poderia Édipo fazer diferente?
Se ao nascer foi entregue para morte pelo seus próprios pais (Filicídio), se anterior a sua transgressão (o incesto) já havia a transgressão de seu pai Laios em relação a Lei de Hospitalidade da época, sendo inclusive esta, a causa de sua maldição, a peça nos impõe a pergunta,
Qual é então, a responsabilidade de Édipo?
A resposta mostrada por Quinet na apresentação desta tragédia é o “Não querer saber nada disso” de Édipo num momento anterior a descoberta de sua verdade. Pois, se até um bêbedo na cidade em que Édipo vivia conhecia sua história, e em seus pés e em seu nome essa verdade já se revelava, porque Édipo não quer saber nada disso, insistindo em continuar gozando de sua ignorância e indo tão cegamente ao encontro de seu destino?
Assim, podemos pensar que nesta transcriação de Antonio Quinet, encontramos todos os principais personagens não abrindo mão de seu gozo: Nem Laios, Nem Jocasta, Nem Édipo, levando a todos ao encontro trágico com a morte e a responsabilidade de cada em seu próprio gozo!

Ana Maria Domingues Carvalho, psicanalista em Vitória

domingo, 7 de junho de 2009

UAI-DIPOUS!!!!

As apresentações de Óidipous, filho de Laios em Belo Horizonte nos dias 23 e 24 de maio foram um sucesso! O Teatro Alterosa de 350 lugares ficou repleto com lotação esgotada.
As duas apresentações previstas não foram suficientes para atenderem a demanda do público. A Cia. Inconsciente em Cena teve que fazer uma sessão extra no domingo à tarde que também teve lotação esgotada. E, ainda assim, vários mineiros acabaram não conseguindo entrar. Há uma proposta de a Cia. voltar a BH para mais apresentações - o que está em estudo, devido à agenda da Cia. No total foram mais de 1000 pessoas a assitirem a peça nesse fim de semana.
A produção impecável da Produtora Arteiro, capitaneada por Inácio Neves com a asssitente Débora, foi a grande responsável pelo sucesso, tendo recebido a Cia. Inconsciente em Cena com todo carinho e dedicação. Ela contou com a excelente Sinal de fumaça - assessoria de imprensa responsável pela divulgação da peça nos jornais, televisão e rádio.
Em todas as três sessões houve um debate com o público após a peça. No sábado, o diretor Antonio Quinet convidou o filósofo Hugo Tavares para fazer seus comentários e lançar o debate e no domingo à noite o helenista Jacinto Brandão. E na sessão extra o diretor respondeu às perguntas do público. A apresentação da peça seguida de debate do diretor e do elenco com o público vem se tornando uma marca da Cia. Inconsciente em Cena. Temos, com esse formato, a oprotunidade de ter o retorno do público e propor uma reflexão compartilhada fazendo-os participar de nosso processo criativo e epistêmico.
Os mineiros tiveram a oportunidade de apreciarem os trabalhos de dois conterrâneos (que dividem seu tempo entre Rio e BH) que participaram da criação da encenação de Óidipous: José Eduardo Costa Silva que fez a composição da música, e está em cena dirigindo os músicos e tocando alaúde, e Niúra Bellavinha que fez uma obra de arte especial para a peça - "Óidipous Ophtalmoi" (Os olhos de Óidipous) - que é a vídeo-interferência do momento em que Óidipous fura os olhos.
Ao final da apresentação, o diretor, agradecendo a receptividade do público mineiro brincou:
"Com a recepção e o carinho de vocês, estamos pensando em mudar o título de nossa peça para UAI-DIPOUS!!

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Filicídio: avesso do parricídio

Vera Pollo
participação no debate no Espaço SESC após a peça

Gostaria de agradecer o convite de Quinet de participar do debate e manifestar minha satisfação de estar neste debate com Teresa nazar e Glória Sadala. Vou tentar me ater brevemente às contribuições de Freud e Lacan sobre a tragédia.
O complexo de Édipo sem o trágico
Qual a diferença entre o trágico grego e o nosso trágico? Podemos encontrar uma resposta no Seminário 17 de Lacan, no qual ele faz uma releitura do Édipo freudiano. Ele diz aproximadamente o seguinte: uma coisa é o mito do Sófocles e outra é o Édipo freudiano, porque o Édipo freudiano é o mito de Sófocles sem o trágico. E há, ainda, um terceiro ponto que é, nesse momento, a re-interpretação que é feita pelo texto de Quinet. Nosso mito do Édipo é o “complexo de Édipo”, como Freud o chamou, e que ele já é o mito sem o elemento trágico grego, que seria o resultado da predominância dos valores coletivos sobre o desejo individual. Aqui, não se trata de passar do desejo ao ato, porque o nosso complexo de Édipo são as nossas fantasias incestuosas, nossos impulsos incestuosos, nossas tentações- eles não são o ato trágico, que leva necessariamente à morte.
Édipo no Xingu
Nesta versão tribal do Édipo da peça do Quinet, é impressionante como as máscaras do Xingu se adaptaram perfeitamente aos personagens gregos. Durante a apresentação, eu cheguei a comentar isso com a Ana Carolina Lobianco: o quanto um feiticeiro do Xingu pode passar por um feiticeiro da Grécia. É impressionante! A Esfinge também...

Além disso, dois elementos chamaram muito a minha atenção.
O estrangeiro
O primeiro é a questão do estrangeiro. Qual é o lugar do estrangeiro? Será que o trágico não está para nós justamente na descoberta de que o estrangeiro é também o mais íntimo? Édipo é um estrangeiro, ele mesmo se afirma nestes termos, porque ele saiu do ventre de uma tebana, mas não pode ser reconhecido como tal. Onde quer que ele esteja, será sempre um estrangeiro. Esse é um tema trágico presente na experiência psicanalítica e que, hoje, foi posto em cena.
O filicídio: avesso do parricídio
Um segundo elemento é o crime do filicídio como o avesso do parricídio. Parece-me um tema de uma contemporaneidade muito grande.
Podemos ver como a estrutura é, de fato, transcultural e atemporal. A bem da verdade, para nós, o tema do filicídio é um acréscimo de Lacan à teoria freudiana. Como se Lacan estivesse dizendo a Freud:
“Mas... escuta, você criou o mito do parricídio, você criou Totem e tabu, não é pouco não, porém vamos ao Antigo Testamento. Será que o filicídio não é o avesso do parricídio? Será que sua intenção é apagar o filicídio com o parricídio? Será que o parricídio apaga o filicídio?”
Isso, a meu ver, é de uma contemporaneidade atroz. Por exemplo, nos últimos dias, está voltando na nossa mídia, o assassinato da Isabela Nardoni, que foi morta pelo pai e pela madrasta. Não sei se seria uma boa tragédia para Aristóteles, mas há coisas que não vamos saber nunca.
A virada
Lembro-me de ter lido nele que uma boa tragédia depende, entre outras coisas, de um número certo de metáforas. E depende também de uma virada, uma reviravolta no enredo, da felicidade à infelicidade, independentemente do caráter do herói. É preciso que tudo mude muito, e de repente. Eis o característico da tragédia para Aristóteles.

terça-feira, 12 de maio de 2009

O avesso de Eros

Marco Antonio Coutinho Jorge
debate no Espaço SESC
29/3/2009

Agradeço muito ao Quinet pelo convite para conversar um pouco sobre a peça. É um prazer estar aqui com Gloria e também com vocês. Infelizmente, não pude ver a peça antes, porque isso teria sido certamente necessário para a gente poder explorar mais uma porção de elementos que a peça apresenta. Ela tem uma densidade, uma riqueza de elementos que, certamente, dão vontade de ver de novo.

Com Lacan pelo avesso
Antes de tudo, o fato de Quinet, um psicanalista lacaniano, ter reescrito ou transcriado o Édipo, é extremamente relevante. Só um psicanalista lacaniano poderia ter uma visão do Édipo em que a ênfase fosse colocada em alguns aspectos. A primeira coisa que me ocorreu, foi que deve ter sido muito difícil escrever isso, deve ter sido de virar pelo avesso. Para se escrever, como diz o nome da peça, Édipo pelo avesso, é preciso virar pelo avesso. Para um psicanalista fazer um trabalho desses, é preciso tomar contato com uma intimidade de questões suas, pessoais, dos seus pacientes, da sua experiência de vida e da própria psicanálise. Eis o que confere a força e a verdade que se vê na peça.

A abertura com Laios
Algumas coisas para mim chamam atenção. Em primeiro lugar, o fato de que Quinet deu palavra no texto para personagens que, na peça do Sófocles, nas diferentes versões, elas não aparecem com palavras, mas são apenas indicadas. A abertura com o texto de Laios, achei magnífica, porque é exatamente um texto que a gente pode supor. Eu acho que Quinet quis trazer a idéia de que é um texto que está subjacente à peça, ele move a peça. Um texto que, exatamente porque está de alguma forma recalcado, esquecido ou até obliterado, por todos os modos, quando ele é explicitado, faz com que a gente veja que há outros elementos na peça que não se via até então. A história do Laios, a história que ele infringiu a Lei da Hospitalidade é muito mais relevante do que o fato da homossexualidade do Laios, que muitas vezes é colocada no primeiro plano. Na verdade, não é a homossexualidade de Laios que é a responsável por toda declinação trágica do que virá com a sua descendência, mas sim o fato de que ele infringiu uma lei. A lei da hospitalidade era uma lei extremamente poderosa naquela época. Qual é o efeito disso? Ele se apaixona por Crisipo, e o faz o rapto. A maldição que o pai de Crisipo profere é que será responsável por toda a transmissão transgeracional da desgraça no texto que você mostrou... Achei muito bonito esse texto que foi divulgado para o debate. Não sei se todos vocês puderam ler. Isso vai ser responsável porque alguma coisa ali se produziu como sendo o próprio significante da filiação. “Você seqüestrou e raptou meu filho, aquele que eu amo, então, você receberá do seu filho, o ódio.” É uma espécie de reversão absolutamente forte do que acontece na história do Édipo. É, se assim podemos dizer, a “história patológica pregressa”.

A voz de Jocasta
Outro momento que acho importante foi aquele em que você dá voz a uma personagem cuja voz não está tão explícita no texto do Sófocles: é a Jocasta. Ela aparece dizendo coisas e até mesmo fazendo coisas em cena que mostram sua posição. Isso foi indagado por vários comentadores e estudiosos da tragédia, e Lacan chamou atenção para o quanto Jocasta sabia. Parece que desde o começo... Inclusive eu reparei muito na atriz que a fez, ( Lilian Chalub que se encontra na platéia do debate). O quanto ela, desde as primeiras falas, pelo seu olhar, transmitiu uma inquietude de alguém que está começando a se aproximar de uma verdade que não pode ser tocada. Ela transmitiu isso logo, desde o início. E quando ela toma a palavra naquele monólogo, é maravilhoso ver como ela vai expressar isso de uma forma muito grande, chegando a fazer a gente pensar um pouco assim: o quanto Jocasta, na verdade, reage àquele pedido do Laios para que ela entregue o filho para ser morto. Ela reage a isso de uma maneira terrível, como se ela se vingasse de Laios, mantendo na relação incestuosa, uma vingança. “Você pede para que eu mande matar nosso filho, pois aguarde que ele vai ocupar o seu lugar.” Terrível isso tudo que logo começa a aparecer.

A pulsão de morte
Achei o texto do Quinet maravilhoso por esses poucos elementos que estou comentando e vários outros. Achei maravilhoso por ele explorar a densidade da peça, principalmente no ponto que agora eu gostaria de tocar: a questão da pulsão de morte. Há certa angulação que Quinet vai dar à tragédia, enfocando a pulsão sob a face da pulsão de morte, que está muito além da face com a qual normalmente a gente enxerga a tragédia, que é a face do incesto e da pulsão sexual. Para nós, psicanalistas lacanianos, a pulsão sexual está ancorada na pulsão de morte, mas, na maioria das vezes, a gente não vê a pulsão de morte. Ela fica no segundo plano, e fica tão ofuscada pela sexual, que é barulhenta, muito ruidosa, feérica que a gente não a vê. A pulsão de morte é a base de tudo. Parece interessante ver como esse desamor, esse ódio que fez com que Édipo fosse enviado para a morte, retornasse sob todos os personagens. A pulsão de morte, que ele carregou desde sempre, vai reincidir sobre todos os personagens principais, sobre a família e a geração que está por vir.

Me Funai – antes não ter nascido
Veio-me à mente um texto do Férenczi, que gosto muito chamado “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte”. Curiosamente, Quinet, eu nunca havia feito uma relação entre esse texto, que é uma obra prima de Férenczi e o Édipo. Hoje ficou claro de onde o Férenczi..., que não fala disso no texto, mas é evidente que o texto do Férenczi é sobre o Édipo. “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” significa que, quando uma criança vem ao mundo, ela não está atravessada pelo desejo de viver. Principalmente, ela deseja, na verdade, retornar, como Óidipous fala no final: “me funai”, antes eu não tivesse nascido, porque a morte é paz, é tranqüilidade, é sossego. A vida é que é turbulência, desassossego. O que faz com que uma criança, quando vem ao mundo, queira viver, deseje viver, não é algo que ela carrega nela, algo que vem do Outro. Esse Outro de que Lacan fala tanto, é o Outro do amor e do desejo, o Outro que vem da mãe, do pai, e, sobretudo que faz com que a criança muito rapidamente comece a ter desejo de viver, a encontrar na vida motivos para viver. Eu achei bárbaro como que a questão pulsão de morte adquiriu um plano muito importante no texto que Quinet transcriou com Sófocles, fazendo ver algo que geralmente não se vê.

Eros e Tânatos
Quinet: – A Coriféia diz logo depois do monólogo de Laios que “Será Óidipous capaz de ver o que das trevas a luz descobre, do parricídio ao filicídio, do incesto do filho, crime do pai?”. O filicídio está encoberto pelo parricídio e o crime do pai está encoberto pelo incesto com a mãe.
Marco Antonio: – É isso.
Quinet: – O “pelo avesso” – você pegou e tão bem comentou – é exatamente o filicídio e o crime do pai.
Marco Antônio: – Isso é muito interessante e faz a gente rever e repensar essa questão, porque, analiticamente, a questão do amor e do desejo do outro é fundamental, marca o sujeito desde sempre. Aliás, há outro momento forte em que Jocasta fala disso: a força do homem vem do amor, e sua potência vem da mãe.
[Interrupção feita pela atriz que interpreta Jocasta.]

Liliam Chalub – “Toda potência de um homem vem de sua mãe. É por ela o ter amado como o filho varão que ele crescerá forte, confiante, orgulhoso, com Eros em seu membro, em seu coração.”.

Marco Antônio: – Que deslumbrante! Maravilhoso! Eros é vida, Eros é sexo, sim. É vida, na dialética freudiana. No final sua própria vida, Freud trabalhava o tempo com essa dualidade vida e morte. Eros, o sexo, o sexual é o apego à vida, o apego aos objetos, mas que faz de alguma forma, um freio em relação à destruição: a autodestruição e a destruição do outro. Essa fala da Jocasta é maravilhosa. Vai exatamente dizer o quanto essa posição do Outro define o destino da criança. Maravilhoso! Fiquei muito contente, emocionado porque uma obra de arte é essencialmente uma coisa que toca a gente. A peça vai adquirindo uma densidade! A música, que gostei muito, cria todo o ambiente com alguns pequenos sons, uns barulhinhos que dão um clima que vai crescendo em densidade até o final, que toma uma força extraordinária!. A saída de cena do Édipo achei maravilhosa!. Ficam todos e ele sai de cena. De lá vem uma luz forte. Vocês repararam? Aqui escurece tudo. Ele cego está diante da luz muito forte - o que mostra a antítese que na peça de Édipo rei é jogo de ambigüidades, de oposições, que é explorada de uma maneira maravilhosa.


Responsáveis pela transcrição do debate:
Fernanda Guapyassú de A. Santiago – aluna UVA
Luis Manuel Gonçalves Braz – aluno UVA
Revisão : Ondina M.A.A. dos Santos – aluna UVA
Aline Drummond – Professora UVA

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A ignoerrância e o Inconsciente

Gloria Sadala

participação no debate após a peça

29/03/2009

Gloria Sadala: – É um prazer muito grande estar aqui assistindo e participando dessa obra de Antonio Quinet e, mais ainda, porque a peça tem uma articulação com o nosso Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, da Universidade Veiga de Almeida, como resultado da pesquisa Psicanálise e teatro. E é um prazer também estar com Marco Antonio, nosso colega e amigo. Marco Antonio e Antonio Quinet têm uma contribuição já inestimável para a psicanálise.

O Inconsciente é o destino

Hoje, estava preparando um trabalho e me deparei com um texto de Lacan, nos Escritos, “A Coisa freudiana”, que me lembrou a peça Óidipous, filho de Laios. Eu já assisti na estréia e assisti também em outros momentos anteriores. Anotei o trecho que me lembrou da peça, quando Lacan diz assim:

“Acreditas agir quando te agito ao sabor dos laços com que há, com teus desejos, assim, estes crescem como forças e se multiplicam em objetos que te reconduzem ao despedaçamento de tua infância dilacerada. Pois bem, é isso que será teu festim até o retorno do convidado de pedra que serei para ti, posto que me evocas.”

A peça fala, por um lado, desse convidado de pedra, do significante que determina um sujeito (a linguagem do Inconsciente que na peça é representada pelo oráculo) e que é a garantia da indestrutibilidade do Inconsciente. São as marcas para além da significação – elas representam a garantia de que uma carta chega sempre ao seu destino. Por outro lado, a peça do Quinet mostra também que há sempre uma margem de jogo, deixada pelo próprio significante, e que torna possível a psicanálise.

A "ignoerrância"

Para falar do eixo condutor da peça vou usar um termo do próprio Antonio Quinet que empregou numa Jornada nossa: a ignoerrância. Vejo várias palavras aí condensadas, mas vou ressaltar apenas duas: ignorância e errância. Errância é o não querer saber sobre o inconsciente. Errante, diríamos que é aquele que quer burlar a castração, e errância, é equivalente à paixão pela ignorância. Vocês devem ter observado que este termo aparece aqui no texto da peça em alguns momentos. Qual é o paradigma dessa ignorância? É o recalque.

A música e o não saber

Eu disse para o Quinet que hoje eu gostei mais ainda da peça. Pude, por alguma razão, apreciar mais a música. Deixei a música penetrar ainda mais em mim e isso se juntou a tudo que eu estava acompanhando. Algumas coisas se ressaltaram hoje para mim. Ficou mais evidente ainda essa ênfase do não saber. Estamos mais acostumados a ter uma leitura da peça Édipo Rei como um Édipo em busca de saber sobre a sua origem. O não querer saber fica bem evidenciado na peça pelo fato de Jocasta também estar do lado do não saber. Mesmo quando Édipo quer saber. Há dois tempos: um primeiro tempo na peça em que a ênfase é nesse Édipo que não quer saber. Mas depois, quando ele. tem algum contato com a sua verdade, ele não pode mais se desligar dela. É o segundo tempo, o de um Édipo que quer saber, que vai atrás desse saber, mesmo quando Jocasta tenta lhe convencer do contrário.

Tirésias e a verdade como mulher não-toda
Muito interessante também Tirésias estar representado na peça como mulher. Isso tinha me escapado das outras vezes que eu assisti à peça.. Pude pensar que Tirésias é um adivinho, um sábio, que ele é aquele que tem a verdade. Parece-me que essa ligação com a verdade levou Quinet a colocar Tirésias como mulher. Pois a verdade tem a marca de não-toda, tal como a mulher.

O grego
Achei muito interessante também, como já tinha percebido nas outras apresentações, essas palavras em grego enigmáticas e que nos causam questionamentos. A gente fica morrendo de curiosidade para saber o que querem dizer. Lembrei agora da cena da refeição totêmica em que todos falam: “Io Pã, Io Pã”. O que significa?

Quinet: – “Io” é uma saudação grega, igual a oi, e “Pã” é um divindade, o sátiro, que é é considerado o símbolo da sexualidade. É um animal silvestre metade homem e metade bode. Essa homenagem a “Pã”se dá naquele momento em que Óidipous indica que mais do que saber quem é seu pai e sua mãe ele é mesmo diz assim: “filho da sorte”, paida dês tycke. Aí, no coro, responde que é filho de Pã, e também de Dionísio, o que lhe confere uma genealogia divina nesse momento, que é o único momento alegre da peça.

Gloria Sadala:

A cena da refeição totêmica
Pois bem, a representação da refeição totêmica mostra, de forma bastante clara, a passagem do pai morto para a lei. Uma passagem muito bonita! (Trata-se da referência ao mito descrito por Freud em Totem e tabu em que os filhos matam o pai, em seguida o representam por um animal, como símbolo da lei, que é sacrificado e comido em ritual periódico).

O que fazer com as marcas recebidas?
Podemos entender Óidipous como um sujeito dividido entre histórias e tempos. Entre duas histórias: a de seus pais e a sua própria. E também entre dois tempos: o tempo até Corinto, antes do encontro com a verdade e, posteriormente, em Tebas. Óidipous somos todos nós, marcados pelo destino, marcados pelo grande Outro (O Inconsciente ou os deuses da Grécia antiga), como a peça mostra. Por mais que Óidipous tenha fugido do saber em um primeiro tempo, essa determinação inconsciente, representado pela maldição do oráculo, marca, o tempo todo, sua história. Todos nós também estamos marcados pelo grande Outro: estamos às voltas com o que fazer com as marcas que recebemos e identificamos no tempo de vida que temos pela frente ou no tempo de vida que nos resta.

A transcriação e a análise
Gostaria de tocar em mais um ponto: a transcriação. O programa da peça nos diz que a transcriação é uma tradução criativa com liberdade do autor, que a recria e transforma o texto original em uma obra sua. A análise é isso: uma transcriação, ou seja, um apropriar-se da sua história, das suas determinações inconscientes de modo a poder transformar alguma coisa delas na própria vida.

domingo, 26 de abril de 2009

Uma polêmica bárbara


Elisabete Thamer*

Tragédias sempre suscitam paixões. Este era e é, aliás, um de seus téloi ou mesmo sua essência. Oidipou, filho de Laios, de Antônio Quinet, se insere nesta mesma tradição, provocando paixões e polêmicas.

Segundo Aristóteles, o mito é o principio (arché) e como que a alma (hoion psyché) da tragédia (Poética, 1450a). O mito remonta à tradição oral, o que implica variações por vezes dispares de um mesmo tema. É o que ocorre, por exemplo, com o mito de Hércules – algumas versões contam que o herói cumpriu os doze trabalhos para expiar a culpa do assassinato de seus próprios filhos, outras sugerem que os doze trabalhos o antecederam.

O mito excede assim o que foi encenado nas tragédias gregas: os tragediógrafos compunham a partir de um elemento ou de uma das versões de um mito. O enigma proposto pela Esfinge a Édipo, história que mesmo nós, tupiniquins, “conhecemos”, não se encontra na Trilogia tebana de Sófocles, como por vezes imaginamos.

A transcriação da saga de Édipo realizada por Antônio Quinet ultrapassa o âmbito da encenação sofocleana e por isso trata-se, em meu entender, de uma trans-criação e não de simples transcrição. Quinet insere aspectos do mito edípico que, não estando presentes na Trilogia tebana, a completam e esclarecem. Oidipous filho de Laios é, sem dúvida, fruto de elaborada pesquisa, uma obra que poderia ser qualificada de mitopoiética.

É exatamente a literalidade da transcriação greco-brasileira (ou greco-xinguense) de Quinet, que me parece ter escapado ao espírito perscrutador de Bárbara Heliodora (cf. O Globo, 21/03/09). Sem dúvida, Oidipous filho de Laios solicita ouvidos mais helênicos do que “bárbaros” (def. “não gregos”; “que não falam grego”), ouvidos que se deixem invadir pelo equivoco homofônico, pela lalação da alíngua grega, a de Édipo.

Muito poderia se dizer ainda sobre a distinção, crucial, entre “predestinação”, “desastre” e o conceito grego de até, indistintos na crítica de Heliodora. Poderíamos debater também sobre o uso dos coturnos que, mais do que justa indumentária trágica, são mimesis excelsa dos pés inchados, oidipous...

Para nós, psicanalistas, além do thaumazein estético, a transcriação de Quinet abre uma via de reflexão fundamental sobre dois destinos da clínica analítica: enveredar pela via do deciframento, “historial” – o crime de Laios, decifra-me ou te devoro; ou a que conduz ao inconsciente-real, jogo de alíngua, “ahistórico”, indecifrável, letra de gozo, hors-chaîne: oidipous, dipous, tripous, tetrapous... Oidipous, filho de Laios encena essa dupla possibilidade de arrimo da análise. A segunda não vai sem a primeira, mas a primeira conduz à análise infinita. A primeira perpetuará a tragédia; a segunda a transformará, talvez, em comédia.

Tudo o mais é questão de gosto, eterna e catártica polêmica, entre as rãs de Aristófanes e os urubus de Zé Celso.

* Psicanalista, Doutora em filosofia (Université Paris IV-Sorbonne), Membro do Centre Léon Robin de Recherches sur la Pensée antique (CNRS- Paris IV- Sorbonne)

sábado, 4 de abril de 2009

Carta de Liana, uma atriz

Ao Sr Antonio Quinet

Desculpe-me invadir sua caixa de e-mail, assim dessa maneira. Mas nao pude deixar de escrever. Meu nome é Liana e já trabalhei (indiretamente) com o sr. na peça Artorquato. Eu era (ou melhor servia de) assistente de figurino da Luiza Marcier. Foi uma ótima experiência, para um atriz recém chegada ao Rio como eu.

Agora que moro aqui faz algum tempo, e ja me ambientei ao meio cultural não podia deixar de escrever sobre o e-mail que recebi que trata de uma resposta do sr. à critica Barbara Heliodora.

Embora ainda não tenha tido o prazer de assistir a sua peça (infelizmente), pelo pouco que conheço de sua trajetória acho deveras ingênuo crer que o sr. realizaria algo que passasse perto do superficial ou que deixasse a desejar nas pesquisas. Obviamente aqueles que entendem um pouco de psicanalise podem perceber ensinamentos profundos e pequenas sutilezas em seus trabalhos. E para aqueles que ainda não aprenderam a pensar acho um bom momento para começar.Achei a franqueza, a honestidade, e diga-se de passagem, a delicadeza de sua contra-resposta perfeitas. Se faz necessário que alguém do seu gabarito intelectual reinvidique o direito de resposta (porque nós pobres mortais - atores quase sempre rechaçados por ela, e pela crítica em geral, e que não temos titulos de intelectuais não podemos reclamar). Não é preciso valorizar sua arte porque, talvez você saiba disso melhor do que eu, o que vale para o criador, de verdade, é o "encontro do espectador com a obra" (lembrando Jayme Monjardim) e nisso se cumpre seu processo de trabalho, e tenho certeza que com louvor. Parabéns e obrigada em nome de todos nós atores.
Liana Castello

sexta-feira, 3 de abril de 2009

resposta a Bárbara Heliodora

Édipo antropofagizado

Ousei sim

Sim, como Bárbara Heliodora me acusou, eu ousei tocar na peça de Sófocles, Édipo Rei e foi, como ela mencionou, como professor e psicanalista (cf. O Globo, 21/3/2009). Sim, mas com o propósito de encenar minha terceira peça de teatro desta vez com a Cia. Inconsciente em Cena que traz ao palco a pesquisa cênica inspirada em Freud e Lacan. Daí a escolha da peça fundadora da dramaturgia e da psicanálise transcriada à luz das contribuições contemporâneas.
É crime?
Será um crime (de lesa-majestade), um psicanalista fazer teatro e por isso ser publicamente desrespeitado? Se esse “crime” parece novidade para alguns, não é o caso, por exemplo, nem na Argentina, com Eduardo Pavlovsky, nem na França com Alain Didier-Weill, Jean Gillibert e François Regnault, este último professor da Universidade de Paris 8. E tampouco em São Paulo, como o testemunham Betty Milan e Contardo Caligaris. Afinal de contas, a psicanálise sempre esteve ao lado da arte desde Freud, que encontrou nas obras de arte de Sófocles, Shakespeare, Goethe, Leonardo da Vinci, etc, as mesmas manifestações do inconsciente que ouvia de seus pacientes e que o fizeram inventar a psicanálise.
O Inconsciente na arte e no divã
Nada de espantar, pois ambas são feitas do mesmo material: as tragédias familiares, os conflitos intra e intersubjetivos, os sonhos, as paixões como o amor, o ódio e a ignorância, encontros e desencontros, e todos os tipos de atos falhos e bem sucedidos.Não esperava, como fez a crítica do O Globo, colocar-me na série daqueles que “se arriscaram a tratar do tema” como Sêneca, Jean Cocteau e Pasolini entre outros.
Faltou o pequeno "a"
Tampouco fiz uma "transcrição" como ela diz e não compreendeu; e sim uma transcriação como está escrito em toda a divulgação. Porém o pequeno a escapou à leitura talvez apressada da especialista em Shakespeare. Os analistas perceberão o "ato falho" – faltou o objeto, dito pequeno a, de Lacan, que designa a posição do sujeito com o objeto de desejo ou repúdio, e que norteia a releitura da peça (vide programa). "Transcriação" é um termo de Haroldo de Campos para designar a tradução criativa, com todas as licenças poéticas e interpretantes, cujo texto o autor pode reivindicar como original e própria.
O Inconsciente é o infantil do adulto
O texto de Óidipous, filhos de Laios respeitou a estrutura do texto de Sófocles com interpolações de cenas e interpretações a partir dos comentários de Freud, Nietzsche, Hölderlin, Vernant, Lacoue-Labarthe e Lacan. Mantive a proposta de Sófocles de colocar nos protagonistas uma linguagem coloquial e no coro uma linguagem metafórica. Se para Barbara Heliodora o resultado é uma encenação que se dirige a um público infantil, prefiro pensar que não se trata de uma desqualificação da psicanálise e do público a que ela se dirige e sim daquilo que se sabe há mais de um século: o Inconsciente é o infantil de todo adulto. Ou talvez ela partilhe da opinião comum de que a Antiguidade grega é a infância da humanidade.
A tradução resgata o que foi dito
Para resgatar o poder de comunicação da peça, substituí alguns deuses gregos e suas histórias, desconhecidos do público, por seus atributos e representações, tal como Hölderlin traduz Zeus por o Pai do tempo, simplesmente por que Zeus não significa mais nada para nós. Afinal, como diz Françoise Dastur, “a tradução consiste em reescrever o texto, a fim de fazer aparecer o que realmente foi dito”.
Eu, você e ela: os Édipos
Óidipous, filho de Laios não é uma peça metalingüística sobre Édipo Rei de Sófocles, ou uma desconstrução (como o estupendo, e também desqualificado por Bárbara Heliodora, Ensaio Hamlet pela Cia. dos atores) e sim, como já dissemos, uma transcriação que estabelece um diálogo com o tragediógrafo grego e coloca em cena a essência do que a peça transmite – a relação entre o saber e a verdade – numa releitura contemporânea e brasileira. O resultado se encontra do lado de um público de variado grau de instrução que acompanha emocionado o desvendamento da verdade e sua negação por parte de Édipo, produzindo o efeito trágico, descrito desde Aristóteles, em que através do reconhecimento dos desastres da vida, e da catarse propiciada pela encenação (texto, música, espetáculo, atuação), o espectador sai do teatro tocado e revigorado. Afinal, Édipo sou eu, você e ela também.
O que se herda
Nossa releitura reintroduziu o tema da maldição (presente em Ésquilo) que Édipo, sem saber, herda do pai e influencia todos seus atos – o que não retira sua responsabilidade. Não se trata de "predestinação”, como propõe B.H., que é um termo vago e ultrapassado, e sim da herança simbólica e inconsciente que todos recebemos como seres humanos tecidos pelas histórias e desejos paternos e maternos.
Óidipous e a Esfinge
Oidipous, filho de Laios retoma os nomes dos personagens em grego não por um "anseio de originalidade" do autor, e sim pelo fato de a peça centrar-se na equivocidade significante em grego entre o enigma da Esfinge (dipous, tripous, tetrapous – dois, três e quatro pés) e o nome de Édipo (Oidipous = pé inchado, saber no pé).
Iokaste não sabia??????????
Quanto à Iokaste (desculpe, Jocasta) é surpreendente que ela afirme que em Sófocles ela quer “só buscar salvá-lo do sofrimento” ao vê-lo aproximar-se da verdade. Isso é retirar toda a complexidade do personagem dessa mãe que manda matar o filho ao nascer e, mais tarde, casa-se com ele e lhe dá quatro filhos malditos que também terão um fim trágico. Toda reflexão mais aprofundada sobre "Édipo Rei" deixa claro que era impossível Jocasta não saber que seu marido era o filho que sobrevivera a sua tentativa de filicídio.
A deglutição de Sófocles
Quanto à encenação, a referência aos índios brasileiros não é casual e sim explícita. Ela está presente na composição musical que utiliza elementos gregos e indígenas, nas máscaras dos índios do Xingu, nos bambus utilizados no coro como nas danças dos índios, etc. Trata-se de aproximar daqui e de hoje essa peça grega de 2.500 anos mostrando que o homem é o mesmo e, assim, apontar nossa origem grego-indígena – eis o que nossa "antropofagização" de Sófocles , como diria Zé Celso, produziu.
O estranho do Inconsciente trágico
O mito originário de Édipo é, como o Inconsciente, transcultural e estrutural. Daí o emprego dos coturnos, que os atores gregos utilizavam, para Oidipous e Iokaste (que os retiram ao fazer amor), como, as saias (da cultura oriental) para os personagens: vermelho para os reis e preto para o coro. O trono, constituído por um caixote com bambus, além das folhas secas são os únicos elementos cenográficos num palco vazio – como nos teatros gregos e tabas indígenas – enquadrado pelos músicos distribuídos em quatro cantos. Todos esses signos cênicos simples estão lá para serem lidos juntos à excelente direção de movimento de Regina Miranda que confere ao coro sua dignidade trágica. Se tudo isso pareceu “estranho” a B.H. parece que nossa peça alcançou seu objetivo ao trazer à cena o familiar enquanto estranho, que é justamente a característica, como mostra Freud, dos conteúdos do Inconsciente que nos são estranhos e, no entanto, familiares. Estamos assim também fiéis aos gregos cuja característica, como diz Hölderlin, é “o modo de assimilar naturezas estranhas e nelas compartilhar a si mesmo” (carta a Böhlendorff de 2/121802).

terça-feira, 31 de março de 2009

A verdade cega

Eis o texto que saiu hoje no site A voz do cidadão, que pauta a CBN, publicou hoje esta crítica da peça escrita pelo Jornalista Jorge Maranhão


A superação do espaço cênico com múltiplas linguagens artísticas

Óidipous, filho de Laios - A história de Édipo Rei pelo avesso, de Antonio Quinet


A verdade às vezes cega porque ofusca. E a chamada crítica teatral da grande mídia não tem aberto bem os olhos para uma dramaturgia que tenta superar o espaço cênico com múltiplas linguagens artísticas e com um texto, por exemplo, transcriado da clássica peça de Sófocles, como afirma o próprio autor Antonio Quinet. Como o próprio oráculo Tirésias, cego e, por isso mesmo, portador da verdade, da decifração dos enigmas. Pois neste caso é vantagem combinar o olhar do psicanalista com as mãos do diretor de cena teatral, como é o caso de Quinet. Por que ele sabe que Tirésias é cego para melhor “ver” a verdade na sua dimensão essencialmente ideal, como de sorte, todo o pensamento idealista-platônico daquela época. No seu louco afã de se limitar ao texto antigo, muita vez a crítica é míope, conservadora e intolerante para fruir a abertura e polissemia de verdadeira obra-de-arte. Como diz o autor na apresentação de seu trabalho, se trata de revirar o mito de Óidipous pelo avesso pois o texto de Sófocles e suas interpretações e encenações se limitam ao parricídio e o incesto quando, pelo avesso, está na verdade o filicídio de Laios contra Óidipous. Como na diferença que marca o De’s misericordioso de Israel que segura a mão de Jacó no momento em que este tenta sacrificar Isac e o Deus cristão que não ouve a súplica de Cristo na cruz quando lhe pergunta por que o abandonou. A maldição para tamanha transgressão será a peste de todo um povo no vaticínio de Pélops a Laios que teria raptado seu filho Crísipo: - terás um filho que te matará. E Óidipous herdará a mesma maldição da esfinge: - farás sexo com tua mãe e matarás teu pai! Ou seja, o parricídio de Óidipous está justificado pela tentativa de filicídio de Laios. E a maldição se perpetua. Mas Óidipous sobrevive ao filicídio de Laios, ao seu triplo equívoco de nascer amaldiçoado, ao de matar o pai e se casar com a mãe, gerado e gerador, saindo e entrando pelos mesmos quadris de Iokaste. O preço é não querer saber e se cegar, pela inevitável herança da maldição lançada contra o pai. Mas para além da ação dramática e dos conceitos psicanalíticos, o que chama a atenção e está na origem da polêmica crítica, é a transgressão do autor ao próprio universo sagrado do teatro grego. Quinet se apropria dos textos de Sófocles e Ésquilo para recriar, ou transcriar, o drama de uma pulsão de morte, da relação de Óidipous com Laios. E mais transgride quando aproxima o universo da cultura grega com o universo da cultura Xingu. E aí a minha grata surpresa: o que pensava ser apenas uma citação de nossas origens, é mais do que isso, uma aproximação antropofágica de ambas as mitologias, onde a indígena digere a européia para a produção de uma terceira cultura. Como definiu o próprio autor: - em ambas a lei da hospitalidade é sagrada, ambos os povos da Grécia e do Xingu são panteístas e andam nus, para além do significado de Óidipous, como pés inchados, tal qual o Abaporu de Tarsila do Amaral, que marca a passagem de nosso modernismo e foi a própria inspiração de Oswald de Andrade para o manifesto antropofágico, onde deciframos nossas origens tanto gregas quanto indígenas. Resta saber se a crítica enxergou a essência do trabalho de Quinet: a necessária afirmação e transgressão de nosso olhar nacional e singular diante da farta mesa da mitologia grega. Ou será que não podemos mesmo participar do banquete mitológico universal? Confira você mesmo! http://oidipousfilhodelaios.blogspot.com/ http://www.youtube.com/watch?v=M1PXrzr95OU

31/3/2009

Todas as agendas para a categoria "Teatro":
A superação do espaço cênico com múltiplas linguagens artísticas

"Óidipous, filho de Laios", de Antonio Quinet, e a transgressão de nosso olhar nacional e singular diante da farta mesa da mitologia grega

31/3/2009

sábado, 28 de março de 2009

Affonso Romano de Santa'na comenta

Em resposta ao comentário de João Carlos Moura sobre a crítica de Bárbara Heliodora à peça Óidipous, filho de Laios, Affonso Romano de Sant'ana escreveu:

"João, havia visto a critica de Bárbara e percebi que (Óidipous, filho de Laios) mexeu com ela e seus princípios rígidos de teatro. Imagino que a peça seja isto que me diz, uma reinvenção do mito.(...)"

segunda-feira, 23 de março de 2009

Ela diz não, então vá !

Artigo de João Carlos Moura sobre crítica de Bárbara h
Heliodora em o Globo de sábado 21/3/09

No Rio estreou uma peça que já é sucesso em sua curta temporada. Imperdível : Óidipous, filho de Laios - A História de Édipo Rei pelo Avesso, releitura de Sófocles feita com absoluta criatividade pelo psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet.
Quinet é um dos mais brilhantes psicanalistas brasileiros, seus livros já são traduzidos para vários paises, e não raro quando faz palesta no exterior ( EUA, Inglaterra, França...) as salas lotam. É dos lacananianos puros que segundo me disse o psicanalista frances ( em Búzios ) Dominique Inarra quando Quinet vai a Paris fazer palestra ele " fecha o consultório " e disputa lugar nas salas repletas. Quinet não se veste à Lacan, não faz trejeitos e fala para ser entendido. O seu sucesso na clinica é comprovado pelos resultados pró-vida que alcançam seus clientes.
Falo do Quinet psicanalista primeiro porque não posso imaginar psicanalista que não tenha cultura. Quinet é também grande admirador e colecionador de arte e decoração, e em suas peças de teatro artistas plásticos de alguma forma participam ; nos cenários, figurinos, vídeos etc, daí parte da riqueza visual sempre presente nas suas criações para o teatro que escreve e dirije.
Quinet não repete jargões do velho teatro, como desejaria a senhora Barbara Heliodora que ainda escreve em O GLOBO sobre " teatro " . Ela foi acusada de ser grande conhecedora de Shakespeare e isto lhe fez um grande mal : quando espera para ver a estréia de uma peça seus olhos recuam do século 18 para trás, até chegar à Grécia e às cavernas, começo do teatro.
E alí ela fica parada esperando ver o que não existe . Mas sem dúvida ela contribui imensamente para o teatro brasileiro quando fala mal de uma peça: eis então o segredo do seu "não" como um código a ser decifrado: o sucesso da peça ! Se ela diz " não " ao texto, aos cenários e figurinos, à interpretação dos atores e gente da qualidade de Regina Miranda ( responsável pela direção de movimento) é porque algo espetacular, novo, está em cena . E merece ser visto. E na primeira semana de apresentação no SESC do Rio ( Copacabana) as salas estão sempre lotadas. A revista VEJA deu destaque em meia página para a peça Óidipous recomendando como entre os espetáculos no Rio que merecem ser vistos.
Nesta montagem o clássico Édipo-Rei de Sófocles há uma transformação ( a mágica do teatro) - ou paralelo - entre o homem grego, o homem do Xingu, e o homem da cidade . Mais atualidade que isso impossível . Seria muito mais fácil que Quinet seguisse os manuais do bom tetro grego ( como desejaria a senhora de teatro ) do que ousar-ousar como faz com sucesso na peça em cartaz no Espaço SESC- Mezanino com 80 lugares . O espetáculo fica até 5 de abril. E Quinet dramaturgo já está também no primeiro time.

* psicanalista e artista plástico

sexta-feira, 20 de março de 2009

Óidipous, a permanência do Inconsciente

Sobre a crítica de Macksen Luiz
em O Jornal do Brasil de 19/03/09

Em sua crítica de ontem da peça, Macksen demonstra que nossa peça apresenta o essencial do que queremos transmitir.

Ele escreve: "Óidipous, filho de Laios, em cartaz no Mezzanino do Espaço SESC, adaptação de Antonio Quinet para a tragédia Édipo rei de Sófocles, se submete às perigosas implicações comuns a qualquer transposição que intente o avesso do original." Constata, portanto, que a história que a peça conta é a história de Édipo rei pelo avesso, ou seja, através do filicídio e do relato do pai morto, Laios, cujo monólogo inicia a peça. Laios no reino do Hades, no meio de espectros que se movem como vermes nús, conta sua história e a de seu filho. Eis a ante-cena que interpolamos ao texto de Sófocles.

Saber e arte
Macksen chama a atenção de como a peça é fruto de intensa pesquisa, ou seja, que não é mais uma mera adaptação, mas que tem um embasamento teórico multidisciplinar. "Ao sobrepor interpretações culturais, filosóficas e psicanalíticas ao desvendamento da verdade, esta encenação de Édipo retrata os atos interditos do personagem e o caráter trágico do conhecimento como pontos de reflexão." Ficamos felizes de constatar que a peça está transmitindo a articulação entre os atos do parricídio e do incesto efetuados por Édipo e sua paixão da ignorância que o dificulta em seu caminho de desvendamento da verdade (que seu pai quis matá-lo e que seus atos estão vinculados à maldição que seu pai recebera).E chama a atenção do leitor para a articulação entre a pesquisa acadêmica e a arte tanto no texo quanto na encenação: "A transcriação do texto e a direção de Quinet deixam evidente que a cena foi construída a partir de análises teóricas e projeções interculturais que traduzissem, com recursos teatrais, a proposta de investigação".

Inconsciente permanente e fundador

O mais interessante para nossa Cia. é ter alcançado o objetivo de colocar o Inconsciente em cena (nome de nossa Cia.). Diz o conceituado crítico, com sua fineza concisa: "O espetáculo busca na ritualização - em que civilizações como a grega e a indígena se encontram, ou tentam se encontrar, num espaço psicanalítico - a integração das linguagens. A idéia de fundação e de permanência do inconsciente se transporta por épocas e culturas, dimensionadas em signos que perpassam cada uma delas". O transculturalismo e transhistoricidade do Inconsciente é aqui captado por Macksen apontando para a universalidade de Édipo não só como desejo inconsciente mas como objeto do Outro no Inconscinete, que é o foco de nossa adaptação. De objeto admirado e amado ele passa a odiado e expulso, como fôra quando nasceu. A utilização na montagem de elementos indígenas (máscaras, maquiagem, instrumentos musicais dos índios do Xingu), gregos (textos no original e fragmentos musicais) e orientais (peças de figurino e sinos tibetanos), música tocada em alaúde barroco, vídeo contemporâneo são alguns dos signos mencionados por ele, o que aliás são retomados adiante em sua crítica.

A tragicidade em cena
Macksen nomeia esses signos: "Os sons, as máscaras, as vestes, a maquiagem, todos os elementos se combinam para criar esse multiculturalismo cênico, e alcançar conceitos como essência, tragicidade, paradigma". Eis alcançado nosso objetivo: levar os conceitos à expressão artística e mostrar no palco o Inconsciente trágico com seus desejos criminosos, com seus paradoxos, com todas as maldições herdadas, com a desmedida do gozo que nos impulsiona a realizar o impossível e as consequências dos atos impensados. Tudo isso o sujeito sabe sem saber - eis a tragicidade do conhecimento. É a essência do homem que esta tragédia traz aos palcos com toda sua complexidade. "Sou triplo equívoco, diz Óidipous, ao nascer, ao casar a ao matar". Esses equívocos não são só deles, podem ser de todos. O Coro, no Estásimo IV, diz 'Óidipous, és paradigma da condição humana".

Obrigado, Macksen Luiz.

Antonio Quinet
Cia. Inconsciente em Cena

terça-feira, 17 de março de 2009

Teirésias entre gozo e verdade

TEIRÉSIAS:
Você não se enxerga! A escória dessa cidade é você!

ÓIDIPOUS:
Você ousa me acusar e pensa escapar ilesa?

TEIRÉSIAS:
Tenho comigo a verdade.



ÓIDIPOUS (irônico):
Você a recebeu de sua arte?

TEIRÉSIAS:
De você mesmo ao me obrigar a falar. Escute: você é o assassino procurado!

ÓIDIPOUS:
Você vai pagar caro por essas palavras

TEIRÉSIAS:
Sem saber, você se uniu aos seus e não vê o mal que fez!

ÓIDIPOUS:
Você acha que pode falar isso impunemente?

TEIRÉSIAS:
Uma vez desvelada, a verdade não pode ser afastada.

(Diálogo entre Óidipous e Teirésias no Estásimo I de Óidipous, filho de Laios)

Quem é Teirésias?
Teirésias (nome em grego de Tirésias), é o personagem na peça de Sófocles, retomado em Óidipous, filho de Laios, que se apresenta como Mestre da Verdade.


Em Óidipous, filho de Laios é uma mulher xamã que tem o dom de vidência ao incorporar uma suposta divindade, ou melhor, ao se tornar Outra (inclusive para si mesma). Ela incorpora e vê A Verdade, ao vestir a máscara (de indígenas do Xingu) para revelar a Óidipous quem ele é.

A história de Teirésias: homem & mulher

Segundo a mitologia, quando jovem, ao passear no Monte Citéron, Teirésias cruzou com duas serpentes copulando. Ao bater nelas separando-as, ele se transforma em mulher. Sete anos depois, ao passar pelo mesmo local, encontra novamente cobras copulando e, ao fazer o mesmo, volta a ser homem. Devido a essa experiência insólita de ter experimentado os dois sexos, Teirésias foi chamado por Zeus e Hera para opinar sobre uma querela do casal.e Quem goza mais no ato sexual: o homem ou a mulher? Tirésias disse que a mulher goza nove vezes mais do que o homem. Hera, ao ver assim desvelado o segredo feminino, ficou colérica e o fulminou com a cegueira. Zeus, para consolá-lo lhe deu a longevidade (para viver durante sete gerações) e o dom da adivinhação.






O gozo feminino e a verdade
A característica, portanto, principal de Teirésias é a de conhecer o gozo feminino, esse gozo do Outro, obscuro e opaco, que as mulheres guardam no segredo do inefável – eis sua grande vidência. É o que Lacan desenvolve no Seminário XX, ao situar o gozo feminino, como gozo do Outro (sempre em alteridade) e para-além do falo e da fala.
Em Óidipous, filho de Laios, Teirésias é a representante desse gozo que não se diz: uma mulher e xamã. É esse gozo experimentado, para além da linguagem, que lhe permite ser Mestra da verdade. Pois a verdade também não está totalmente na linguagem, ela não pode ser dita por inteiro. A verdade, como A mulher, é não-toda.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Teatro que desperta

Após o fim de semana de estréia com lotação esgotada envio comentário que a professora Aline Drumond da UVA enviou para seus alunos com cópia para mim.
Antonio Quinet

A PEÇA "OIDIPOUS FILHO DE LAIOS " É ANTES DE MAIS NADA UM TEATRO QUE NOS DESPERTA: NERVOS E CORAÇÃO !!!
PENSO QUE UMA VERDADEIRA PEÇA DE TEATRO PERTURBA O REPOUSO DOS SENTIDOS, LIBERA O INCONSCIENTE, PERMITE QUE NOSSOS RECALQUES ADQUIRAM VIDA.
SAI DA PEÇA BASTANTE AFETADA E RAPIDAMENTE ARTAUD SE FEZ PRESENTE EM MIM, "QUANDO TUDO NOS LEVA A DORMIR, OLHANDO COM OLHOS ATENTOS E CONSCIENTES, É DIFÍCIL ACORDAR E OLHAR COMO NUM SONHO, COM OLHOS QUE NÃO SABEM MAIS PARA QUE SERVEM E CUJO OLHAR ESTÁ VOLTADO PARA DENTRO".

É COM SEU TEATRO QUE QUINET NOS DESPERTA E NOS RESTITUI TODOS OS CONFLITOS EM NÓS ADORMECIDOS. FICA AQUI, ENTÃO, MEU AGRADECIMENTO AO MEU QUERIDO ANTONIO QUINET.

ALINE DRUMMOND

domingo, 15 de março de 2009

A base da encenação

Decifra-me ou te devoro
Óidipous, filho de Laios é uma reflexão sobre a essência do homem e o caráter trágico de nossa civilização renegado pela mercantilização generalizada onde tudo tende a ser superficial, descartável e fluido. Como Édipo, temos que decifrar o enigma da Esfinge – O que é o homem? – e o enigma da peste – Por que tanta destruição? Não há mais deuses. É o homem que tem que responder. Quem não o faz vive como cego, é devorado pela Esfinge e sucumbe à peste da vida. É preciso retomar a dimensão trágica da vida com seus paradoxos: o enigma da origem, o conflito entre a determinação inconsciente (e histórica) e as escolhas do sujeito, as vicissitudes do sexo e a tensão entre indivíduo e a coletividade. Focalizamos a dimensão mítica de nossa origem greco-indígena para abordarmos o real da existência.
Tebas é aqui – uma tribo outrora sofisticada e próspera hoje em extinção. A pulsão de morte está solta devastando multidões: doenças, rixas e guerras. O céu está vazio e os homens à deriva em busca de um salvador. O oráculo aponta o culpado: Óidipous, que sou eu, é você, e todos nós. Às cegas, o homem – grego, indígena ou urbano - erra pelo mundo sem conhecer o que determina suas ações. Só o saber sobre sua história e seus desejos pode levá-lo a ser capaz de fazer suas escolhas e produzir transformações.
A maldição dos Labdácidas começa com Laios (filho de Lábdacos), cuja desmedida o faz transgredir as leis da hospitalidade e raptar seu amante Crísipo, filho de Pélops, o qual o amaldiçoa: se tiver um filho este filho o matará - eis porque Laios manda matar Óidipous assim que ele nasce. Ao escapar do filicídio e tornar-se mais tarde rei, Óidipous, não quer saber da maldição herdada que, no entanto, está marcada em seu nome e em seu pé: comete o parricídio, casa com a mãe e transmite a seus filhos (entre eles Antígona) o tributo do gozo paterno.

sábado, 14 de março de 2009

A transcriação


O texto de Óidpous, filho de Laios, é uma transcriação da peça de Sófocles Édipo Rei com interpolações, a partir de várias versões em português, inglês, francês e cotejada com o texto grego. Transcriação é o termo de Haroldo de Campos para se referir a uma tradução cuja criação, a partir das opções do tradutor, produz um texto original. Seguimos a estrutura da peça de Sófocles (os diálogos intercalados com o coro) acrescentando: a ante-cena com o monólogo de Laios, o reino dos mortos; a cena do encontro de Óidipous com a Esfinge; o libelo de Iokaste a favor do incesto e seu monólogo suicida.
Toda transcriação é necessariamente uma interpretação. A nossa foi efetuada a partir da psicanálise e da filosofia e do ponto de vista do qual pretendemos contar a história: o tema da maldição herdada e a posição de Óidipous de ignorá-la. A maldição do Labdácidas, transmitida por Laios a seu filho e netos não está presente em Sófocles e sim em Ésquilo. Substituímos os deuses pelas qualidades que eles encarnam e consideramos que o oráculo de Delfos representa o que está inscrito no Inconsciente como determinação enigmática.
Mantivemos os nomes dos personagens e algumas palavras em grego, não só para o espectador provar o sabor da língua matriz, mas para mostrar como o nome de Édipo (Óidipous) pode ser escutado no enigma da Esfinge – o que é que tem quatro pés (tetrapous), dois pés (dipous) e três pés (tripous) – o qual é o enigma da origem, do ser e da história e do (não) lugar que lhe havia sido predestinado.
Ao longo de dois anos de pesquisa, com a colaboração de Fernando Salis e de Izabela Bocayuva e a consultoria de Jean Bollack, chegamos a uma versão do texto que, em seguida, ao longo de quinze meses de ensaios e pesquisa cênica, foi sofrendo modificações até a véspera da estréia em março de 2009.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A história de Édipo Rei pelo avesso

Édipo, o objeto

Em sua transcriação Óidipous, filho de Laios, Antonio Quinet introduz na estrutura da tragédia de Sófocles, Édipo Rei, o tema da maldição herdada por Édipo de seu pai Laios. Trata-se de maldição recebida por Laios, após ter se apaixonado e raptado Crísipo (jovem filho de Pélops que era seu anfitrião e tutor), de que ele, Laios, seria morto por seu próprio filho e sua descendência seria desgraçada.
Esse tema está presente em Ésquilo, na trilogia de trágédias Laio, Édipo e Sete contra Tebas assim como na peça satírica que as acompanhava , A Esfinge, das quais apenas Sete contra Tebas chegou até nós.
Sófocles com Freud
Em Édipo Rei de Sófocles (que tudo indica não fazer parte de uma trilogia) há uma supressão do tema da maldição paterna que Édipo herdou. E a desmedida do pai está velada. O que Sófocles acentua é a descoberta feita por Édipo de que ele matou o pai e casou com a mãe.
Freud toma a peça de Sófocles, centrada nesses dois crimes, para estabelecer o complexo de Édipo articulando o desejo pela mãe com o desejo de matar o pai, obstáculo à realização do desejo incestuoso.

Ésquilo com Lacan

A dívida simbólica
Em Óidipous, filho de Laios, a partir de Ésquilo e de Lacan, Antônio Quinet coloca a ênfase na herança simbólica inconsciente (a transmissão da história paterna) que determina os atos do sujeito Édipo. Trata-se da dívida simbólica que os filhos pagam pelos crimes dos pais a nível inconsciente.

O desejo do Outro
Quinet acentua também a questão do desejo dos pais de Édipo em relação ao filho , principalmente o desejo de Laios de matá-lo.
Ao utilizar a teoria do " objeto a " de Lacan, Quinet mostra o lugar de Édipo como o dejeto do desejo do Outro: ele foi vítima do filicídio, seus pais tentaram matá-lo quando pequeno. E mais tarde, depois de ter sido rei, ele volta a ser um dejeto, expulso de Tebas. Édipo experimentou, como rei e esposo da mãe, o lugar de objeto valioso, objeto de gozo dos tebanos todos e foi a causa da prosperidade e da riqueza.

De objeto precioso a dejeto
Assim Édipo experimentou as duas valências do sujeito como objeto do Outro: objeto precioso, desejado, amado e importante e, por outro lado, dejeto, escória, rebotalho. Assim, foi utilizado na transcriação da peça de Sófocles, a indicação de Lacan de que o herói da tragédia grega é o "objeto a."

De sujeito a objeto
Se em Édipo Rei ,de Sófocles, vemos Édipo como sujeito do desejo (mortífero e sexual), em Óidipous, filho de Laios, vemos Édipo como objeto de desejo (mortífero e sexual).
Se em Édipo Rei, de Sófocles, vemos o heroi levado pelo desejo de saber (sua identidade e sua origem), em Óidipous, filho de Laios, ele está cego pela paixão da ignorância (de saber de sua herança simbólica).

Ela se esfinge de peste
Em Édipo Rei, de Sófocles, Édipo decifra o enigma da Esfinge.
Em Óidipous, filho de Laios, Óidipous acerta por sorte o enigma da Esfinge, mas esta não morre, e volta transformada em peste.
Óidipous, filho de Laios mostra que o enigma da Esfinge é o próprio enigma do Édipo. O homem em questão é o próprio Édipo.













quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Catarse e desejo

O espectador de Édipo Rei

A tragédia, segundo Aristóteles, é a mímesis (representação ou imitação segundo diferentes tradutores) de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada e não com a ajuda de uma narrativa mas por atores,, e que suscitando a compaixão e o terror tem por efeito obter a catarse dessas emoções.[1]



Geralmente, a "catarse'", é entendida como "purgação" - uma eliminação, dentro de uma terminologia médica. Porém, a tragédia ao suscita e faz a "catarse" da compaixão e do terror. Será que ela nos livra desses sentimentos, ou ao contrário, nos faz experimentá-los de tal forma que conseguimos lidar com eles através da arte?

Não podemos entender catarse no sentido de eliminação pois não se trata de eliminar o terror e a compaixão como se elimina a excreta na urina. Ao desmedicalizar o termo catarse descobrimos seu verdadeiro sentido: a tragédia purifica esses afetos e deliberadamente deixa-os evidentes, claros, puros.

A tragédia radicaliza: ela visa salientar o sofrimento do espectador, ela quer que ele o sinta puramente, delineadamente.



A identificação do espectador
O espectador sente, por um lado, a compaixão, a pena do herói e do que está acontecendo com ele através da simpatia (ter o mesmo phatos) e, por outro lado, horror através da identificação com aquilo que pode acontecer com ele.
O espectador sent horror, ao se colocar no lugar do herói da tragédia. E sente pena, ao se distanciar dessa posição, porém não sem negá-la.

É a partir dessa identificação através do horror com o herói da peça de Sófocles que Freud estabelece o complexo de Édipo. Segundo ele, o espectador se identifica através do desejo. Ele identifica no herói tanto o desejo de matar o pai quanto o de fazer sexo com a mãe. Eis o que provoca o efieto trágico da tragédia de Sófocles no espectador.




Não é só o horror e sim sua superação: a identificação do espectador com o herói se dá pelo desejo inconsciente. O prazer advém do gozo obtido por satisfazer o desejo proibido que se expressa na arte trágica de Sófocles. É o gozo cujo conteúdo mítico tem dupla vertente: a vertente sexual (dormir com a mãe) e a vertente assassina (matar o pai). Na tragédia de Édipo Rei, o espectador pode gozar sentado em sua cadeira na platéia realizando através do herói aquilo que lhe é impossível. É a catarse dos desejos inconscientes.

Édipo Rei é o Inconsciente em Cena.

Freud não extrai o complexo de Édipo do mito de Édipo e sim da tragédia de Sófocles e do efeito trágico provocado no espectador.





[1] Aristóteles, Arte retórica e Arte Poética, “Capítulo VI” (de Arte Poética); da tragédia de suas diferentes partes”, Edioro, p. 248, sem data.
[2] Freud. Totem e tabu, v. XIII, 1974, p. 185.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Freud e o gozo da tragédia


A representação teatral, segundo Freud, não poupa ao espectador de uma tragédia “as impressões mais dolorosas que no entanto podem levá-lo a um alto grau de gozo”[1]. O termo aqui empregado por Freud não é Lust (prazer) nem Befredrigung (satisfação) e sim Genuss, que podemos traduzir por gozo.

O gozo do espectador da arte da tragédia é um dos exemplos que Freud avança ao propor um gozo para-além do prazer, um gozo que conjuga prazer e dor, onde Eros se conjuga com a pulsão de morte. No entanto, diferente dos casos em que prepondera o sofrimento (o sintoma), a destruição (a guerra) e a mortificação do sujeito (o masoquismo), na representação teatral há uma superação da dor e a valência do gozo se positiva trazendo ao espectador um mais de prazer.

Esse gozo é um prazer para-além do "princípio do prazer" pois não obedece ao limite entre prazer e desprazer. O gozo artístico, presente nas tragédias, é uma transformação, ou até mesmo uma superação da dor que, no entanto, não a elimina totalmente.

Essa superação se encontra também presente no caso das crianças que pedem que contem para elas estórias de terror.

O Jogo do Fort-Da

Freud dá como exemplo desse tipo de gozo na brincadeia infantil, que ficou conhecida como o "jogo do fort-da", no qual uma criança em seu berço lança para fora dele um carretel amarrado num barbante ao som de "ooooo" querendo dizer FORT (longe) e em seguida puxa para si o carretel de volta gritando "aaaaaa", ou seja, DA (perto). Na repetição desse jogo, a criança extrai um gozo para-além do princípio do prazer.

A representação da perda

Para Freud, com essa brincadeira, a criança está representando - no sentido mesmo de representação teatral - o afastamento e a reaproximação da mãe. Esse ato é designado por Freud pelo termo Spiel, que, como to play em inglês, significa jogo, brincadeira e também representação teatral. E ela pode repetir essa brincadeira inúmeras vezes. É uma forma de encenação da dor da perda da mãe e do júbilo de sua volta. É também uma forma de elaborar a perda através do jogo dramático. Nele, à dor do abandono pelo Outro do amor, ao sofrimento pela traição do Outro do desejo contidos no Fort (Cadê?) sobrevém o júbilo afirmativo do Da (Achou!).

O jogo do luto: a tragédia
O júbilo é o efeito detectado por Freud da representação do jogo do fort-da que é um efeito de gozo. Na tragédia, à compaixão e o terror, soma-se o esse júbilo próprio à arte, ou, em outros termos, o entusiasmo. Vale lembrar que um dos termos para designar tragédia em alemão é Trauerspiel, que significa literalmente O jogo do luto. Eis o paradigma do fazer artístico: a transformação do gozo do sofrimento em criação através de uma representação teatral. O jogo do fort-da tem o mesmo fundamento que encontramos na definição que Aristótels propõe para a tragédia: "é a representação (mimesis) de uma ação importante".

Obs: as fotos aqui postadas são do espetáculo Les Atrides, encenado pelo Théatre du Soleil (Paris). Em destaque a a triz brasileira Juliana Carneiro da Cunha.
[1] Freud, Para além do princípio do prazer, v. XVIII, p. 17.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Édipo por Bacon


Inspirado no quadro de Ingres 'Édipo e a Esfinge" (ver postagem dia ) de 1826-27 que está na National Gallery em Londres, Bacon adapatou livremente os elementos da história de Édipo em seu encontro com a Esfinge.

In this painting, Oedipus, his foot anachronistically still bleeding and bandaged, is consulting the sphinx, through the open door an avenging furey whirls in the air, blood dripping from its jaws. The sickly pink and browns heighten the atmosphere of impending doom. The composition is starkly simple, and forms are broady brushed in, but the bloodied foot holds our facinated gaze.

Neste quadro, Óidipous, o Pé-inchado, ainda está com o pé sangrando, ou seja sangrando desde bebê quando seu pai enterrou ferros em seus calcanhares para que pendurado, fosee jogado do alto do Monte Citéron. Ele é o Pé-sangrando diante da Esfinge que coloca para ele o enigma dos pés. .

Com esse quadro, compartilha de nossa interpretação: o enigma da Esfinge se referia diretamente a ele e sua história - a maldição paterna que fez Laios tentar matá-lo. E Óidipous não escutou.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O teatro e a peste

Artaud
A "boa"peste"

Artaud extrai da peste seu lado positivo: seu caráter revelador do mal latente em todo o ser humano; seu poder de convocar forças, reproduzir conflitos ancestrais, trazendo à luz um impossível a suportar, a nomear: o real traumático de um gozo paradoxal onde dor e prazer se confundem. A peste como a pulsão de morte é poder de criação.



Freud fez o mesmo. Ao chegar aos Estados Unidos, no início do séc. XX, para falar sobre a grande novidade que era a psicanálise, Freud disse a Jung: “Nem sabem eles que estamos lhes trazendo a peste!”
O teatro deve ser tão vigoroso e contundente quanto a peste e quanto uma psicanálise. O teatro deve, como a peste, transtornar e transformar.

Eis o poder da peste com a qual se inicia a tragédia Édipo Rei.








Artaud, em seu livro “O Teatro e seu duplo” escreve:


"Como a peste, o teatro é uma formidável convocação de forças que reconduzem o espírito à origem de seus conflitos.”

“A aterradora aparição do Mal corresponde ao tempo negro de certas tragédias antigas que todo teatro verdadeiro deverá reencontrar.”
“Se o teatro essencial é como a peste, não é por ser contagioso, mas porque, como a peste, ele é a revelação, a afirmação, a exteriorização de um fundo de crueldade latente.”


“Assim como a peste, ele é o tempo do mal, o triunfo das forças negras que uma força ainda mais profunda alimenta até a extinção.”

“Há nele, como na peste, uma espécie de estranho sol, uma luz de intensidade anormal em que parece que o difícil e mesmo o impossível tornam-se de repente nosso elemento normal.”
“Toda verdadeira liberdade é negra e se confunde infalivelmente com a liberdade do sexo, que também é negra.”

“Através da peste, e coletivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, é vazado; e, assim como a peste, o teatro existe para vazar abscessos coletivamente.”



“O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa após a qual resta apenas a morte ou uma extrema purificação. Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo que não se adquire sem destruição.
"O teatro convida o espírito a um delírio que exalta suas energias; e para terminar pode-se observar que, do ponto de vista humano, a ação do teatro, como a da peste, é benfazeja, pois, levando os homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos.”

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Apolíneo + Dionisíaco = Tragédia

Dois impulsos estéticos
constituem a arte trágica


Em o Nascimento da tragédia, Nietzsche atribui o efeito trágico à conjunção de dois trieb, “duas pulsões que chamarei de dois impulsos estéticos: o apolíneo e o dionisíaco”[1]. A arte do apolíneo é arte figurada (ex. artes plásticas) e a arte de Dionísio é a arte não figurada como a da música. A conjunção de ambas geraram a tragédia ática.



Nietzsche por Munch (1906)


O apolíneo é o âmbito da figuração, da bela aparência, do mundo dos sonhos (o sonho como figuração plástica) e das fantasias, do poder divinatório característica do deus Apolo, a quem os gregos erigiram um santuário em Delfos onde se situava o Ônfalus, umbigo do mundo.






O dionisíaco é a “exceção ao princípio da razão”. É a embriaguês, o delicioso êxtase, da beberagem narcótica à alegria pela aproximação da primavera após o inverno passando pelo terror e pela violência dionisíaca que arrasta multidões cantando e dançando bramando a vida candente, como no carnaval (carnevale – festival da carne). O transporte dionisíaco[2] faz o subjetivo se esvaecer. Cantando e dançando o homem desaprendeu a andar e a falar, e está aponto de sair voando pelos ares. O homem caminha agora extasiado e enlevado. Na arte o sujeito em fading caminha acéfalo ao comando das batidas da pulsão. “A força artística revelou-se sob o frêmito da embriaguês”. A arte advém quando o sujeito se esvai diante do objeto; “o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte”.

O Culto a Dionísio: origem da tragédia
A tragédia desenvolveu-se a partir do culto a Dionísio com as orgias dionisíacas passando pelo ditirambo dionisíaco (canto com coro e solista) onde os participantes são incitados “à máxima intensificação, segundo Nietzsche, de todos as suas capacidades simbólicas”[3].
No culto com as festas se alcançava o “júbilo artístico” e se presentificam a “maravilhosa mistura dos afetos do entusiasta dionisíaco” constituindo o “fenômeno segundo o qual os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos”. Na música dionisíaca “da mais elevada alegria soa o grito de horror ou o lamento por uma perda irreparável”[4].

Dionísio é o deus da transformação e da duplicidade e da fragmentação trazendo em seu mito vida e morte conjugados. Filho de Zeus e Perséfone foi esquartejado pelos Titãs e em seguida, Atenas reuniu seus pedaços e os entregou a Zeus. O costurou em sua coxa e proporcionou-lhe um segundo nascimento. Foi então que entregou a Sileno, sátiro sábio, para ser seu preceptor.

Deus despedaçado, símbolo da abolição do sujeito por ter sido morto e depois revivido, Dionísio é o símbolo da ambigüidade e duplicidade. Deus da transformação, ele é o deus do teatro. Sobre aquele que educou Dionísio, Sileno, relata-se, segundo Nietzche, que à pergunta do rei Midas que queria saber do sábio o que era o melhor e o preferível para o homem, respondeu: “Antes não ter nascido e nada ser. Depois disso o melhor é morrer o mais rápido possível”. É o que encontramos cantado pelo Coro de Édipo em Colona, comentado por Lacan: Me Funai! Antes não ser¹



O apolíneo, como defesa ao dionisíaco
Diante dos temores e horrores do existir, os gregos criaram a cultura apolínea da beleza com o louvor à vida com harmonia e prudência instaurando a medida, a observação das fronteiras do indivíduo. Ao lado da necessidade estética da beleza colocaram a exigência do “conhece-te a ti mesmo” e o “nada em demasia”, frases inscritas no templo de Apolo, em Delfos.


Dioníso X Apolo

A revolta do dionisíaco
“Imaginemos, diz Nietzsche, como nesse mundo construído sobre a aparência e o comedimento, e artificialmente represado, irrompem o tom extático do festejo dionisíaco em sonâncias mágicas cada vez mais fascinantes, como mostra todo o desmesurado da natureza em prazer, dor e conhecimento. Até o grito estridente devia tornar-se sonoro; imaginemos o que podia significa o demoníaco cantar do povo em face aos artistas com seus salmos diante de Apolo com os fantasmais arpejos de harpa!”[5]

Todos os preceitos apolíneos são aí esquecidos e a hybris revela-se como a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores. “E em toda parte onde o dionisíaco penetrou, o apolíneo foi suspenso e aniquilado”. O êxtase do estado dionisíaco conduz ao “aniquilamento das usuais barreiras e limites da existência”[6].

A conjunção do dionisíaco e o apolíneo: a tragédia
É a expressão do dionisíaco através da forma apolínea que vamos encontrar na arte da tragédia grega do séc. V a.C. herdada no culto de Dionísio e dos ditirambos (canto coral composto por um solista e um coro que dança, toca e canta). “O coro ditirâmbico, diz Nietzsche, recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco para que, quando o herói trágico aparecer no palco, eles não vejam um homem mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios”[7].


O dionisíaco da tragédia, trazido principalmente pela música, confere ao mito a mais profunda significação. Se não fosse a tragédia, o mito perderia sua função de ser o arauto da verdade, ou seja, uma modalidade de (semi)-dizer a verdade: a verdade de sua descontração mantendo seu enigma. A tragédia ao colocar o mito em cena com a poesia e a música restaura seu poder de transportar o gozo e suas vicissitudes.

A música, essência da tragédia
A música dionisíaca na tragédia faz o mito florescer pois o destino do mito é “arrastar-se pouco a pouco na estreiteza de uma suposta realidade histórica e ser tratado como um fato único com pretensões históricas”[8]. A música, para Nietzsche, é a essência da tragédia, “essência que cabe interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados dionisíaco”... “como mundo onírico de uma embriaguês dionisíaca”.[9]

Acolher o dionisíaco na arte
Enquanto Apolo rege a medida, a harmonia, a ordem e a proporção criando as formas e a beleza, Dionísio rege a hybris, desmedida, volúpia da dor e do sofrimento, a indiferenciação que em estado puro levaria até o aniquilamento da vida. Para Nietzsche não se trata de afastar, negar ou rejeitar o dionisíaco, mas de recebê-lo para que ele se expresse através das formas apolíneos, sem se deixar subjugar por estas. O resultado dessa conjunção artística foi a tragédia grega - fenômeno que durou um século.



Teatro de Dionísio (Atenas)

Eis, a meu ver, o que faz Freud dizer que Nietzsche foi “o primeiro psicanalista”, ao render homenagem a ele em entrevista aos 70 anos, pois aí poderíamos reconhecer a proximidade dos conceitos de Eros e pulsão de morte com as “pulsões” (trieb) descritas por Nietzsche[10].


Trecho extraído do texto de Antonio Quinet A Tragiorgia, publicado em Stylus, Revista da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, vol. 17, 2007.


[1] Nietzsche, O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo, 1992/2006.
[2] Nietzsche, Ibid., p. 30.
[3] Nietzsche, Ibid, p. 35.
[4] Nietzsche, Ibid, p. 34.
[5] Nietzsche, op. cit. p, 41.
[6] Nietzsche, op. cit. p. 55.
[7] Nietzsche, op. cit. p. 62.
[8] Nietzsche, op. cit., p. 71.
[9] Nietzsche, op. cit., p. 90.
[10] Freud entrevistado por George Sylvester Viereck in A Arte da Entrevista (org. Fábio Altman), 2004.